Page 115 - C:\Users\Leal Promoções\Desktop\books\robertjoin@gmail.com\thzb\mzoq
P. 115
há um longo balé protagonizado por ambos até a primeira vez. E aí as seguintes ficam mais
fáceis e, em geral, mais frequentes e violentas.
O primeiro depoimento do filme é interpretado por Lilia Cabral — extraordinária. Ela conta
como o casamento se transformou e recomeçou a partir de um rompimento provocado por
uma agressão física. Ao contar a história, ela enxerga a violência que é do marido, mas
também assume a violência que é sua. E talvez por isso tenha se tornado possível, depois de
algum tempo, reinventar a relação. A anterior tinha acabado no momento em que ela foi
jogada contra a parede pelo marido. A nova, depois de muita reflexão e namoro, só se tornou
viável porque ambos criaram um casamento onde era possível mudar identidades
cristalizadas que sufocavam a ambos. Mas, para que isso pudesse acontecer, foi preciso
primeiro romper, separar.
Ao abrir com um depoimento fora do padrão da vítima tradicional e do desfecho mais
ainda, o filme já inquieta e mostra que não veio para repetir clichês ou apontar culpados.
São vários os méritos neste sentido. Um deles é o de retratar histórias de classe média,
contrariando a falsa crença de que a violência doméstica é coisa de pobre. Pode ser que ela
seja mais visível nas periferias e favelas, até pelo tipo de moradia e a proximidade dos
vizinhos. Mas a violência doméstica está em toda parte. E também nos palácios, de onde às
vezes é mais difícil escapar e onde os gritos são abafados pelos muros e pelas convenções.
Outro mérito é contar a trajetória de agressões em uma relação entre duas mulheres,
embaralhando a crença de que a violência pertence aos homens. Poucas coisas são tão
perniciosas para as próprias mulheres do que a crença de que não são violentas. Esta é uma
das grandes mentiras que, incrivelmente, se sustentam até hoje.
Amor? é uma boa pergunta em forma de filme. A primeira manifestação da plateia, assim
que as luzes se acenderam, foi de uma mulher, uma psicanalista, afirmando que aquelas
histórias não tratavam de amor, mas da “patologia da paixão”. Achei muito significativo. É
reveladora a necessidade de definir se é amor ou não é. E deixar claro que não é.
Desqualificando assim o discurso de homens e mulheres envolvidos em relações violentas
quando dizem que, mesmo ao bater ou apanhar, ainda amam. Ou que permanecem na
relação “por amor”.
Minha opinião é que amor é como arte. É muito difícil definir o que é. E o senso comum ou
mesmo o dos “especialistas” vai mudando ao longo do tempo. Dizer que uma relação não é
amorosa porque contém violência ou que quem ama não bate é querer tornar o amor algo
da esfera do sagrado, limpinho e imune às contradições humanas. Esse discurso, pelo avesso,
legitima a violência. Se fosse amor, então, a violência estaria justificada, porque o amor é
maior do que tudo ou vence tudo, por ele valeria qualquer sacrifício, até apanhar. É colocar
o amor, de novo, no âmbito do sagrado, que nos eleva mesmo quando é ruim. E por isso
teríamos de suportar qualquer coisa, inclusive agressões.