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há um longo balé protagonizado por ambos até a primeira vez. E aí as seguintes ficam mais
        fáceis e, em geral, mais frequentes e violentas.

          O primeiro depoimento do filme é interpretado por Lilia Cabral — extraordinária. Ela conta
        como o casamento se transformou e recomeçou a partir de um rompimento provocado por
        uma agressão física. Ao contar a história, ela enxerga a violência que é do marido, mas

        também assume a violência que é sua. E talvez por isso tenha se tornado possível, depois de
        algum tempo, reinventar a relação. A anterior tinha acabado no momento em que ela foi

        jogada contra a parede pelo marido. A nova, depois de muita reflexão e namoro, só se tornou
        viável  porque  ambos  criaram  um  casamento  onde  era  possível  mudar  identidades
        cristalizadas que sufocavam a ambos. Mas, para que isso pudesse acontecer, foi preciso

        primeiro romper, separar.
          Ao abrir com um depoimento fora do padrão da vítima tradicional e do desfecho mais

        ainda, o filme já inquieta e mostra que não veio para repetir clichês ou apontar culpados.
        São vários os méritos neste sentido. Um deles é o de retratar histórias de classe média,
        contrariando a falsa crença de que a violência doméstica é coisa de pobre. Pode ser que ela

        seja  mais  visível  nas  periferias  e  favelas,  até  pelo  tipo  de  moradia  e  a  proximidade  dos
        vizinhos. Mas a violência doméstica está em toda parte. E também nos palácios, de onde às

        vezes é mais difícil escapar e onde os gritos são abafados pelos muros e pelas convenções.
        Outro  mérito  é  contar  a  trajetória  de  agressões  em  uma  relação  entre  duas  mulheres,
        embaralhando a crença de que a violência pertence aos homens. Poucas coisas são tão

        perniciosas para as próprias mulheres do que a crença de que não são violentas. Esta é uma
        das grandes mentiras que, incrivelmente, se sustentam até hoje.

          Amor? é uma boa pergunta em forma de filme. A primeira manifestação da plateia, assim
        que as luzes se acenderam, foi de uma mulher, uma psicanalista, afirmando que aquelas
        histórias não tratavam de amor, mas da “patologia da paixão”. Achei muito significativo. É

        reveladora  a  necessidade  de  definir  se  é  amor  ou  não  é.  E  deixar  claro  que  não  é.
        Desqualificando assim o discurso de homens e mulheres envolvidos em relações violentas
        quando dizem que, mesmo ao bater ou apanhar, ainda amam. Ou que permanecem na

        relação “por amor”.
          Minha opinião é que amor é como arte. É muito difícil definir o que é. E o senso comum ou

        mesmo o dos “especialistas” vai mudando ao longo do tempo. Dizer que uma relação não é
        amorosa porque contém violência ou que quem ama não bate é querer tornar o amor algo
        da esfera do sagrado, limpinho e imune às contradições humanas. Esse discurso, pelo avesso,

        legitima a violência. Se fosse amor, então, a violência estaria justificada, porque o amor é
        maior do que tudo ou vence tudo, por ele valeria qualquer sacrifício, até apanhar. É colocar
        o amor, de novo, no âmbito do sagrado, que nos eleva mesmo quando é ruim. E por isso

        teríamos de suportar qualquer coisa, inclusive agressões.
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