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brinquedos para nós, mas com baby-dolls para a minha mãe. Baby-dolls que deixariam não
        apenas o Mickey ruborizado, mas também os piratas do Caribe.

          É também o único homem que eu conheço que dá rosas para a minha mãe no “aniversário
        de conhecimento”. Até hoje. Sim, “aniversário de conhecimento” é uma data lá em casa.
        Enquanto o poste embaixo do qual trocaram sussurros supostamente castos existiu, eles

        faziam visitas periódicas ao poste, como uma espécie de dívida de gratidão. Depois, foram
        miseravelmente traídos pela prefeitura. E o banco da praça onde trocaram confidências, e

        algumas inconfidências, foi parar no museu. Não por causa deles, parece óbvio para todos.
        Menos para nós.
          Tudo começou com o que eu chamo de “tijolaço” que minha mãe acertou na cabeça do

        meu pai. Minha mãe se finge de ofendida, mas sei que ela aprecia a minha versão. Era terrível
        a minha mãe. Aos 13 anos ela viu meu pai passar com seu porte de soldado de chumbo e

        decretou: “Este vai ser meu”. Meu pai nem desconfiava, preocupado que estava com suas
        obrigações no internato, ele que trabalhava duro para pagar os próprios estudos, primeiro
        na limpeza, depois na supervisão dos alunos. Não adivinhava, mas já tinha o futuro decretado

        por uma pirralha com uma trança ruiva de cada lado.
          Aos 15 anos dela, 20 dele, ela o avistou na festa de Sete de Setembro da paróquia da igreja

        matriz e despachou um correio amoroso em sua direção. Correio amoroso era a versão do
        torpedo no século passado. Era 1950, veja bem, no interior do Rio Grande do Sul, e ela tivera
        o desplante de escrever essa intimação. Sutil como uma ararinha azul num filme de zumbis,

        a minha mãe: “Se for correspondida, serei a mulher mais feliz do mundo”. Meu pai espichou
        um meio-sorriso em sua direção, o que deve ter lhe custado mais do que o passo que Neil

        Armstrong daria no final da década seguinte. Meu pai só foi aprender a sorrir muito mais
        tarde. Ensinado, claro, pela minha mãe.
          Minha  mãe  se  tornou  mesmo  a  mulher  mais  feliz  do  mundo.  E  vice-versa.  E  nós

        aprendemos  a  vê-los  sempre  de  mãos  dadas  andando  pela  cidade,  no  seu  passo  só
        aparentemente dissonante, minha mãe mais ligeirinha, atuando no miúdo, e meu pai com

        passadas lentas e firmes. Meu pai passeando pelos interiores de si, minha mãe novidadeira,
        auscultando os arredores. E, aos finais de semana, os dois executando o balé de décadas ao
        caminharem de mãos entrelaçadas para espiar as vitrines das lojas, fazendo de conta que

        elas mudavam, se abismando ora com a boniteza das peças, ora com o preço “pela hora da
        morte”.
          Quando eu era criança, como já contei aqui, eles cumpriam também o programa familiar

        do domingo, no qual éramos generosamente incluídos, e que consistia em uma volta de fusca
        para ver as casas bonitas da cidade pequena. Sempre as mesmas, sempre dos mesmos. Lá

        em Ijuí eram os médicos, os fazendeiros e os empresários  que tinham se dado bem no
        “milagre” econômico da ditadura militar que tinham casas bonitas. O resto se virava.
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