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A vida deu e tirou de tudo do meu pai e da minha mãe, como em geral faz com quase
        todos. Rouboulhes uma filha, deu-lhes outra da pá virada, na maior parte do tempo faltou-

        lhes  dinheiro  e  sobrou  trabalho,  suspiraram  de  júbilo  e  de  tristeza  talvez  na  mesma
        proporção. Por muitos anos sonharam em fugir do verão de Ijuí, de onde até o diabo escapa
        lá por dezembro, mas não encontravam jeito. Quando juntaram umas economias, a casa que

        alugaram ficava na zona rural da cidade praiana, e em vez de gaivotas tínhamos galinhas.
        Mas nos divertimos mesmo assim, e virou história.

          Como virou história a nossa primeira ida em família a um restaurante. Humilde, quase
        casto nos meus olhos de hoje, era o melhor, quase o único da cidade, e pisávamos em nuvens
        com nossas roupas de aniversário, sentindo aromas de mil e uma noites. Para mim, nunca

        haverá um D.O.M. ou Fasano que se equipare ao restaurante do Primo. Desde então, e até
        hoje, qualquer prato seguido por “à Califórnia” é sinônimo de coisa muito fina lá em casa. A

        gente  enchia  a  boca  para  dizer  “à  Califórnia”.  E  até  hoje  meus  pais  adoram  coisas  “à
        Califórnia”.
          Para mim e para meus irmãos, era um choque descobrir que na casa de alguns de nossos

        amigos os pais não se beijavam nem arrulhavam. Nós achávamos que era uma lei da natureza
        que  determinava,  geneticamente,  o  modus  operandi  dos  pais.  Fiquei  indignada  quando

        disseram, uns anos atrás, que Hebe Camargo tinha inventado o selinho. Todo mundo sabe
        que foram os meus pais.
           O amor é assim. Cheio de desimportâncias que fazem uma vida. Acho que a sabedoria

           dos meus pais foi ter percebido que eram essas pequenas delicadezas o que realmente
           importava. Que os desacertos e as trapalhadas teciam os enredos das histórias que iam
           bordando a nossa pequena saga. Ninguém nunca achou lá em casa que era fácil viver,

           por isso o difícil assustava, mas não nos metia tanto medo assim.
          Gosto de pensar, quando acordo pela manhã, que meus pais estão procurando, apesar das
        dores de outono, uma posição para ficarem abraçadinhos. E, assim, encaixados de amor,

        falarem da vida enquanto lá fora, como Erico Verissimo tão bem percebeu, rugem o tempo
        e o vento, cada vez mais vorazes.

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