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Unidade I




               aspirar à liberdade? O miserável coração nasceu cativo e só no cativeiro pode viver. O que ele
               deseja é mesmo servidão e tranquilidade: quer reverenciar, quer ajudar, quer vigiar, quer se
               romper todo. Tem que espreitar os desejos do amado, e lhe fazer as vontades, e atormentá-
               lo com cuidados e bendizer os seus caprichos; e dessa submissão e cegueira tira a sua única
               felicidade.


                   Tem que cuidar do mundo e vigiar o mundo, e gritar os seus brados de alarme que
               ninguém escuta e chorar com antecedência as desgraças previsíveis e carpir junto com os
               demais as desgraças acontecidas; não que o mundo lhe agradeça nem saiba sequer que
               esse estúpido coração existe. Mas essa é a outra servidão do amor em que ele se compraz
               - o misterioso sentimento de fraternidade que não acha nenhuma China demasiado longe,
               nenhum negro demasiado negro, nenhum ente demasiado estranho para o seu lado sentir
               e gemer e se saber seu irmão.

                   E tem o pai morto e a mãe viva, tão poderosos ambos, cada um na sua solidão estranha,
               tão longe dos nossos braços.


                   E tem a pátria que é coisa que ninguém explica, e tem o Ceará, valha-me Nossa Senhora,
               tem o velho pedaço de chão sertanejo que é meu, pois meu pai o deixou para mim como o
               seu pai já lho deixara e várias gerações antes de nós, passaram assim de pai a filho.


                   E tem a casa feita pela nossa mão, toda caiada de branco e com janelas azuis, tem os
               cachorros e as roseiras.


                   E tem o sangue que é mais grosso que a água e ata laços que ninguém desata, e não
               adianta pensar nem dizer que o sangue não importa, porque importa mesmo. E tem os
               amigos que são os irmãos adotivos, tão amados uns quanto os outros.


                   E tem o respeitável público que há vinte anos nos atura e lê, e em geral entende e aceita,
               e escreve e pede providências e colabora no que pode. E tem que se ganhar o dinheiro, e
               tem que se pagar imposto para possuir a terra e a casa e os bichos e as plantas; e tem que
               se cumprir os horários, e aceitar o trabalho, e cuidar da comida e da cama. E há que se ter
               medo dos soldados, e respeito pela autoridade, e paciência em dia de eleição. Há que ter
               coragem para continuar vivendo, tem que se pensar no dia de amanhã, embora uma coisa
 Revisão: Leandro - Diagramação: Léo  - 14/07/2011  se debater nos cuidados, vigiar e amar, e acompanhar medrosa e impotente a loucura geral,
               obscura nos diga teimosamente lá dentro que o dia de amanhã, se a gente o deixasse em
               paz, se cuidaria sozinho, tal como o de ontem se cuidou.


                   E assim, em vez da bela liberdade, da solidão e da música, a triste alma tem mesmo é que


               o suicídio geral. E adular o público e os amigos e mentir sempre que for preciso e jamais se
               dedicar a si própria e aos seus desejos secretos.


                   Prisão de sete portas, cada uma com sete fechaduras, trancadas com sete chaves, por


      80       que lutar contra as tuas grades?
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