Page 40 - Franz Kafka: A metamorfose
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em breve desapareceria. A maçã podre e a zona inflamada do dorso em torno dela
        quase não o incomodavam. Pensou na família com ternura e amor. A sua decisão de
        partir era, se possível, ainda mais firme do que a da irmã. Deixou-se ficar naquele
        estado de vaga e calma meditação até o relógio da torre bater as três da manhã. Uma
        vez mais, os primeiros alvores do mundo que havia para além da janela penetraram-
        lhe a consciência. Depois, a cabeça pendeu-lhe inevitavelmente para o chão e de
        suas narinas saiu um último e débil suspiro.
        De manhã, ao chegar, a empregada, com toda a força e impaciência, batia sempre
        violentamente com as portas, por mais que lhe recomendassem que o não fizesse,
        pois ninguém podia gozar um momento de sossego desde que ela chegava, não viu
        nada de especial ao espreitar, como de costume, para dentro do quarto de Gregor.
        Pensou que ele se mantinha imóvel de propósito, fingindo-se amuado, pois julgava-
        o capaz das maiores espertezas. Tinha à mão a vassoura de cabo comprido, pro-
        curou obrigá-lo a pôr-se de pé com ela; empunhando-a à entrada da porta. Ao ver
        que nem isso surtia efeito, irritou-se e bateu-lhe com um pouco mais de força, e só
        começou a sentir curiosidade depois de não encontrar qualquer resistência. Com-
        preendendo-se repentinamente do que sucedera, arregalou os olhos e, deixando
        escapar um assobio, não ficou mais tempo a pensar no assunto; escancarou a porta
        do quarto dos Samsa e gritou a plenos pulmões para a escuridão:
        - Venham só ver isto: ele morreu! Está para ali estendido, morto!
        O Senhor e a Senhora Samsa ergueram-se na cama e, ainda sem perceberem com-
        pletamente o alcance da exclamação da empregada, experimentaram certa dificul-
        dade em vencer o choque que lhes produzira. A seguir, saltaram da cama, cada um
        do seu lado. O Senhor Samsa pôs um cobertor pelos ombros; a Senhora Samsa saiu
        de camisa de dormir, tal como estava. E foi neste preparo que entraram no quarto
        de Gregor. Entretanto, abrira-se também a porta da sala de estar, onde Grete dormia
        desde a chegada dos hóspedes; estava completamente vestida, como se não tivesse
        chegado a deitar-se, o que parecia confirmar-se igualmente pela palidez do rosto.
        - Morto? - perguntou a Senhora Samsa, olhando inquisitorialmente para a criada,
        embora pudesse ter verificado por si própria e o fato fosse de tal modo evidente que
        dispensava qualquer investigação.
        - Parece-me que sim - respondeu a criada, que confirmou a afirmação empurrando
        o corpo inerte bem para um dos extremos do quarto, com a vassoura. A Senhora
        Samsa fez um movimento como que para impedi-lo, mas logo se deteve.
        - Muito bem - disse o Senhor Samsa -, louvado seja Deus.
        - Persignou-se, gesto que foi repetido pelas três mulheres.
        Grete, que não conseguia afastar os olhos do cadáver, comentou:
        - Vejam só como ele estava magro. Há tanto tempo que não comia! Quando se ia
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