Page 44 - As Crônicas de Nárnia - Volume Único
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– Vou para casa pelo túnel – disse Polly, com bastante frieza. – É o
                  caminho mais rápido. Se quer mesmo que eu volte, não acha que está na
                  hora de pedir desculpa?

                         – Desculpa? Mulher é fogo! Que é que eu fiz? – Oh, nada, é claro! –
                  respondeu Polly, com sarcasmo. – Só torceu o meu pulso como um saca-
                  rolha!  Só  deu  uma  martelada  no  sino  como  um  imbecil  de  fivela!  Só
                  bancou o bestalhão, deixando que ela agarrasse em você lá no bosque! Só
                  isso!

                         – Oh! – exclamou Digory, muito surpreso. – Muito bem, muito bem,
                  desculpe, desculpe. Reconheço a culpa de tudo. Já disse: desculpe! Mas,
                  por favor, volte. Estarei frito se não voltar.

                         – Não vejo o que poderá acontecer com você... Acho que é o seu tio
                  André quem vai sentar-se nas cadeiras quentes.
                         – Não é isso, Polly. Estou preocupado com mamãe. Imagine só se
                  aquela coisa aparece no quarto dela; a mamãe morre, na certa.

                         – Ah, agora estou entendendo – disse Polly, em outro tom de voz. –
                  Perfeito. Pazes feitas! Volto... se puder. Só que tenho mesmo de ir.

                         E  esgueirou-se  pelo  túnel.  O  lugar  escuro,  que  fora  uma  aventura
                  poucas horas antes, parecia agora um lugar manso e doméstico.

                         Voltemos  ao  tio  André.  Seu  velho  coração  ia  tuque-tuque-tuque
                  quando ele desceu os degraus do sótão, dando pancadinhas na testa com um
                  lenço.  Chegando  ao  próprio  quarto,  no  andar  de  baixo,  trancou-se.  A
                  primeira providência que tomou foi buscar no guarda-roupa uma garrafa e
                  um cálice, mantidos ali fora da vista policialesca da tia Leta. Serviu-se de
                  uma  dose  heróica  da  heróica  bebida  e  bebeu  de  um  gole  igualmente
                  heróico. Depois respirou profundamente.

                         – Palavra! – falou para si mesmo. – Estou inteiramente... Que coisa
                  louca!  Na  minha  idade!  Bebeu  de  um  gole  outro  cálice  de  heroísmo  e
                  começou  a  mudar  de  roupa:  um  colarinho  muito  alto,  muito  reluzente  e
                  muito  duro,  desses  que  mantinham  o  queixo  erguido  o  tempo  todo;  um
                  colete branco todo trabalhado, a corrente do relógio de ouro atravessando
                  de lado a lado; uma sobrecasaca, que ele usava somente em casamentos e
                  enterros;  a  cartola  muito  bem  escovada.  Apanhou  uma  flor  no  vaso
                  (colocado ali por tia Leta), prendendo-a à lapela. Procurou um lenço limpo
                  (um lenço excelente, impossível de se encontrar hoje em dia), deixando cair
                  nele  algumas  gotas  do  que  se  chamava  frasco  de  cheiro.  Atarraxou  o
                  monóculo de fita preta diante do olho e foi olhar-se no espelho.
                         As  crianças  são  bobas  de  um  jeito,  os  adultos  de  outro.  Naquele
                  momento tio  André estava  começando  a  ficar bobo  ao  jeito dos  adultos.
                  Como a feiticeira não estivesse com ele na mesma sala, já se esquecera do
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