Page 88 - As Crônicas de Nárnia - Volume Único
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O lugar lá dentro era ainda muito mais privado do que parecia pelo
                  lado de fora. Caminhou com solenidade, olhando para os lados. Tudo es
                  tava quieto. Mesmo o ruído da fonte no centro do pomar era mínimo. O
                  perfume o rodeava: era um lugar feliz, mas muito grave.

                         Reconheceu logo a árvore que procurava, por encontrar-se no centro
                  do jardim e também porque as grandes maçãs de prata projetavam uma luz
                  própria nos lugares sombrios não atingidos pela luz solar. Caminhou em
                  linha reta até a árvore, apanhou uma maçã e colocou-a no bolso. Não sem
                  olhar para ela e cheirá-la antes de guardá-la.

                         Foi  um  erro.  Uma  sede  e  uma  fome  terríveis  apoderaram-se  dele,
                  uma  vontade  alucinante  de  provar  do  fruto.  Havia  grande  quantidade  de
                  maçãs. Faria mal comer uma? Afinal de contas, o aviso no portão podia não
                  ser precisamente uma ordem; podia ser somente um conselho. E quem liga
                  para conselhos? E, mesmo que fosse uma ordem, seria uma desobediência
                  comer uma maçã? Já observara a primeira ordem: “para outro”.

                         Olhou através dos galhos para o alto da árvore. Acima de sua cabeça,
                  um pássaro maravilhoso estava empoleirado. Digo “empoleirado” porque
                  parecia quase adormecido. Só uma frestinha de um olho estava aberta. Era
                  maior do que uma águia, com o peito cor-de-açafrão, a crista escarlate, a
                  cauda púrpura.
                         Mais  tarde,  ao  contar  a  história,  ele  costumava  dizer:  “O  pássaro
                  estava  mostrando  que  todo  o  cuidado  é  pouco  em  lugares  encantados.
                  Nunca se sabe quem está observando.”

                         Creio eu, no entanto, que Digory não teria de modo algum colhido a
                  maçã  para  si  mesmo.  Coisas  como  NÃO  FURTAR  eram  naquele  tempo
                  mui to mais entranhadas nas cabeças dos meninos do que hoje. Mas, quem
                  pode ter certeza?

                         Estava para voltar ao portão quando parou para dar uma olhada em
                  torno. Foi um choque terrível. Não estava só. A poucos metros dali, avistou
                  a feiticeira. Acabara de atirar fora o miolo de um fruto que havia comido. O
                  suco  da  maçã  era  mais  forte  do  que  se  podia  esperar  e  marcara  com
                  medonha  mancha a boca da feiticeira.  “Entrou pulando o  muro”, pensou
                  logo  Digory.  E  concluiu  que  era  verdade  o  que  estava  escrito  quanto  a
                  encontrar,  junto  com  o  desejo  do  coração,  o  desespero.  Pois  a  feiticeira
                  parecia mais poderosa, mais orgulhosa, mais vitoriosa, mas a sua face era
                  de uma brancura mortal, branca como o sal.

                         Digory  pensou  tudo  isso  num  relâmpago.  Virou  nos  calcanhares  e
                  saiu  correndo  a  caminho  do  portão.  A  feiticeira  seguiu-o.  Quando  ele
                  passou, o portão fechou-se imediatamente, sozinho. Foi a oportunidade de
                  ganhar a corrida,  mas não por muito tempo. Logo que chegou perto dos
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