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De fora para dentro
Crescemos num mundo em que a produtividade é o foco primário da existência. Na geração do au-
tomático, da gratificação instantânea, da imagem, da competitividade de ser quem faz mais, sabe mais,
diz mais, vive mais… e na qual pouco valor se dá à reflexão sobre nós, os outros, o mundo, ou o que
nos liga a todos. Afinal, o pensar não tem um resultado visível, porquê perder tempo com ele? Mas
quando o tempo sobeja, o mundo para e a vida tal qual a conhecemos é adiada, vemo-nos a sós com o
pensamento e com uma inevitável dúvida sobre o que realmente importa.
Perante a ausência de planos e de perspetivas futuras, causada pelos tempos que vivemos, torna-
se difícil encontrar qualquer relevância na nossa existência. Além disso, o distanciamento assume uma
dimensão totalmente nova e dá origem à necessidade de aprender a “estar perto na distância”. Porém,
no meu caso, este desafio resultou sobretudo numa aproximação de mim mesma, na descoberta de
onde reside o meu valor e daquilo que valorizo nos outros.
De facto, estar perto de mim tornou-se numa ferramenta essencial para lidar com a solidão do isola-
mento. No entanto, a estranha facilidade em lidar com o isolamento fez-me tomar consciência de que a
verdadeira solidão nunca derivara da não-presença dos outros. Perdoe-se a incoerência ‘científica’,
mas a distância de dois metros imposta é reduzida a meros centímetros quando comparada à distância
que frequentemente temos de nós mesmos.
Contudo, aprender a apreciar a minha companhia resultou também numa maior valorização das mi-
nhas relações. A impossibilidade da presença física fez-me interiorizar a importância de ter relações
sólidas e significativas, as quais se mantiveram com alguma naturalidade, apesar da distância. Já o
facto de serem ou não numerosas, preocupação que sempre me atormentou, aparenta ser irrelevante.
Com efeito, apesar da instabilidade e ansiedade características do período que vivemos, muitas in-
quietações parecem agora menores. A tomada de consciência do caos e dos prejuízos irreparáveis na
vida das pessoas, na a nível mundial, tornou-me não só uma pessoa mais empática, como despoletou
uma visão mais global da vida. Ademais, a compreensão de que muitas vezes nos deixamos consumir
por pequenos pormenores manifestou-se quer num menor desassossego ao pensar no futuro, quer nu-
ma maior tranquilidade ao enfrentar as adversidades do presente.
A frustração de ver desperdiçados os que eram supostos serem os meus melhores anos de vida,
por exemplo, não parece motivo de grande preocupação quando comparada à angústia daqueles que
são privados dos últimos anos, dos últimos momentos com os que amam, das últimas oportunidades.
Por um lado, a consciência de que o nosso prazo pode ser subitamente encurtado gera uma enorme
urgência de viver. Por outro, a empatia para com as pessoas que apenas desejam estar perto enquanto
podem, passa também por reconhecer o privilégio da juventude. A paz de saber que o nosso tempo
não se esgotou, que podemos considerar os anos como adiados, não perdidos, e que temos a oportu-
nidade de refletir sobre o que queremos realmente retirar deles.
Em suma, a possibilidade de pensar sobre a situação atual tem como elemento comum uma maior
valorização do que tomávamos como garantido. Efetivamente, refletir sobre o que é verdadeiramente
significativo conduz a uma pergunta sem resposta, mas a procura por proximidade na distância origina
uma consciência global da importância das relações. Assim, os laços com nós mesmos, bem como os
que construímos com os outros, adquirem um relevo especial na atualidade, levando-nos a concluir
que, talvez, seja isso o que realmente importa.
Patrícia Casaca, n.º 22, 12.º CT2
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