Page 12 - Processos e práticas de ensino-aprendizagem
P. 12

a  velha  passar  a  ponte”.  E  ali  ficávamos  pedindo  e  pedindo  até  que  ele  contava  as
               histórias de Pedro Malasartes e do mico que ia beber água no rio. Talvez por isso tenha
               desenvolvido gosto pela leitura, mesmo em um contexto sem livros na primeira infância,
               tínhamos  essa  experiência  com  a  contação  de  histórias.  Lembro  também  das
               brincadeiras da infância com os vizinhos, do carrinho de madeira com rolamentos com
               o qual brincávamos no piquete, das novenas de Natal e da caça aos vaga-lumes. Não
               tínhamos brinquedos comprados, sempre fazíamos nossos próprios: bonecas de sabugo
               e  palha  de  milho,  de  cathum  antes  da  florada.  A  brincadeira,  embora  em  tempo
               determinado, pois primeiro tínhamos que trabalhar na roça, era doce e criativa. Ainda
               tenho na memória o cheiro do cathum secando ao sol para “amolecer” e servir de cabelo
               para vidros vazios ou pedaços de mangueira que eram nossas bonecas.
                      Recordo, ainda, da alegria das primeiras geadas do ano. Preparávamos suco de
               limão para colocar em cima da casa para congelar. Não tínhamos geladeira, então esse
               era o momento de aproveitar um picolé caseiro feito em potes de margarina. Aliás, nossa
               primeira geladeira eu e minha irmã mais nova compramos, quando eu já tinha 18 anos de
               idade.
                      Mas as recordações desse tempo também guardam alguns episódios tristes da
               violência doméstica, de dormir todos amontoados com minha mãe no único quarto que
               tinha porta na casa, com todos os objetos e ferramentas cortantes possíveis. Do medo
               da chuva forte que balançava a casa toda. Quando fazia tempestade à noite, ficávamos
               perto da porta enrolados em cobertores para que pudéssemos sair correndo caso a casa
               fosse cair. Talvez nem fosse cair, mas minha mãe tinha muito medo disso e nós também.
                      Embora vivendo em um contexto precário e controverso, eu só me dei conta da
               pobreza quando, em uma campanha das novenas de Natal pediam a arrecadação de
               alimentos. Após isso, na última novena, o livro que o dirigente das novenas utilizava dizia
               para que  fosse  escolhida  a  família  mais  carente para  a  doação  desses  alimentos.  Na
               discussão ao final daquele dia de oração, todos disseram que os alimentos eram para a
               minha família. Na hora eu não entendi direito, mas depois percebi que nossa família era
               a que tinha menos recursos. Eu devia ter uns 8 ou 9 anos naquela época.
                      Lembro do meu primeiro dia de aula, estava com a garganta apertada. A escola
               era longe, íamos de ônibus. Acredito que dava uns 30 quilômetros da minha casa até a
               escola em que estudei a primeira série, na comunidade de Água Azul. No ônibus uma
               menina perguntou: “você é piá ou menina?”. Eu tinha os cabelos bem curtos, por causa
               dos  piolhos.  Tínhamos  muito  piolho.  Hoje  brincamos  que  não  pegávamos  piolho  na
               escola, pois nós é que passávamos para os outros. Quando desci do ônibus vi muitas
               crianças chorando andando em volta da escola, mas apesar da imensa vontade, não
               chorei. A escola era pequena, no prédio de alvenaria ficavam as turmas de 3ª e 4ª séries
               e a secretaria. Logo abaixo havia uma casinha de madeira que abrigava a turma da 2ª
               série e ao lado outra casa de madeira na qual estava a 1ª série e a cozinha. Não havia
               turmas de pré-escola, então entrei direto na 1ª série, com 6 para 7 anos de idade.
                      No primeiro dia apenas desenhamos. Lembro que minhas irmãs já haviam dito
               que nesse dia ia ser assim. Então aprendi a desenhar rosas: círculos que mais pareciam
               pirulitos.  Uma  colega desenhou  um  morango  e  brincou  com  outro  colega que  ela já
               conhecia para que ele adivinhasse. Eu fiquei pensando como seria o desenho de um
               morango, nunca tinha visto um. E assim seguimos nos demais dias, não lembro bem o
               que  fizemos  no  segundo  ou  terceiro  dia,  mas  lembro  de  alguns  episódios:  a
               aprendizagem  das  vogais,  da  acentuação,  com  a  professora  pedindo  que
               adivinhássemos onde ia o acento da palavra ônibus, do circunflexo chamado de chapéu
               do vovô e do acento agudo de grampo da vovó. Lembro também, dos primeiros livros

                                                                                                        10
                       PROCESSOS E PRÁTICAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM: HISTÓRIAS DE VIDA E DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES
   7   8   9   10   11   12   13   14   15   16   17