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LOSURDO. PRESENÇA E PERMANÊNCIA


           do instante e não conduz a uma imediata coincidência entre o curso dos
           eventos e o seu significado, a uma total reapropriação, transparência e
           plenitude de sentido, mas é ela própria percurso de uma difícil cadeia de
           contradições, feita de conquistas e recuos, ligados às relações de poder;
           processo em que cada etapa nunca está assegurada para sempre.
                Losurdo sugeria, à luz do balanço histórico do século XX e das
           suas tragédias, que o marxismo enfrenta um processo de secularização
           complexo, e nada indolor, de modo a prosseguir aquela passagem da
           utopia à ciência (entendida ao modo da Wissenschaft hegeliana), indicada
           por Engels, mas interrompida pelas urgências do conflito permanente
           da idade contemporânea.  Ou seja, para responder  àquela forma de
           consciência que no seu surgimento representara uma novidade radical:
           um peculiar e quase milagroso equilíbrio entre  crítica e legitimação
           da  modernidade,  que  nenhuma  outra  tendência  filosófico-política
           conseguira, até então, elaborar.
                Pensamento dialético implica compromisso entre processo histórico
           e conhecimento humano. Mas é também compreensão da sua natureza
           estruturalmente conflitiva e, portanto, também consciente da totalidade
           sempre cindida a que o conflito alude. É por isto que a Aufhebung anula
           e conserva ao mesmo tempo, integrando num outro nível e numa nova
           posição superativa também aquela parte de verdade que está sempre
           presente, até no campo do inimigo absoluto. O marxismo, à luz desta
           consideração, ou seja, como materialismo histórico, não significa uma
           recusa indeterminada da realidade, mas, partindo da compreensão da
           dimensão estratégica e racional da sua estrutura mais profunda, constitui
           uma negação sempre determinada. As contradições da modernidade e
           do progresso são enormes, por vezes indizíveis, a começar pelo domínio
           total já referido pela acumulação originária, pela brutal desumanização
           de classes sociais inteiras, e de povos inteiros, não raras vezes consumada
           através do extermínio total. Ainda hoje é inegável a injustiça patente da
           ordem burguesa, tanto no interior como no exterior da metrópole. Todavia,
           esta mesma modernidade constitui a época que descobriu o conceito



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