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DOMENICO LOSURDO, 1941-2018 | STEFANO AZZARÀ


               cujas veias circula o sangue da liberdade’”. Portanto, a teoria liberal
               é,  em  primeiro  lugar,  a  autoconsciência  da  comunidade  dos  livres,
               dos “afortunadamente  nascidos” , criando-se  um espaço  sagrado
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               que distingue humanos e sub-humanos, servindo-se de cláusulas de
               exclusividade assentes no censo, na etnia e no gênero.
                     Eis que a celebrada “limitação dos poderes” permite à sociedade
               civil  fugir  à  mediação  do  Estado,  ou  neutralizar  sua  universalização
               formal que,  porquanto utilizada  como cobertura de um bloco  de
               interesses de classe, é, contudo, diferente do nada absoluto. Configura-se,
               então, como a jogada política que solicita, no sistema das necessidades,
               o “emergir de um poder absoluto sem precedentes”, convidando a uma
               delimitação da comunidade dos livres que se contrapõe à dos servos,
               não apenas no plano filosófico, mas também no plano concretamente
               material e geográfico. Servindo até, por fim, de legitimação de uma
               conquista colonial que atravessa toda a idade moderna e que, com as
               suas práticas de extermínio, liquida qualquer pretensão liberal de cultivo
               do “individualismo”.
                     É exatamente  essa vontade obstinada de limitar  a dignidade
               humana apenas ao Ocidente e a incapacidade de pensar um conceito
               universal de  ser humano  que  configuram o terreno  filosófico  sobre
               o qual se mancomunam  o liberalismo e o pensamento  reacionário,
               como assinalou Losurdo pela primeira vez em A Comunidade, a Morte e o
               Ocidente e uma segunda vez na monumental obra Nietzsche, o aristocrata
               rebelde. Com sua “polêmica contra  a modernidade  e o presente” ,
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               esse filósofo, considerado durante muito tempo “inatual”, colocava-
               se,  inicialmente,  no  terreno  do  liberalismo europeu  e  na  sua  ínsita
               denúncia,  hoje ignorada  ou removida, do avanço massificador dos
               movimentos  socialistas e democráticos,  identificando-se  com a
               concomitante exaltação liberal da primazia dos povos europeus sobre os
               sub-humanos das colônias, destinados a ser subordinados e a fornecer
               trabalho servil. Serão o temor e a fraqueza do próprio liberalismo em

               20  Ib., p. 238.
               21  LOSURDO, 2002, p. 326.

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