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LOSURDO. PRESENÇA E PERMANÊNCIA


           do-se em listar tudo o que existiu de não socialista na União Soviética. A
           ladainha lacrimosa do capitalismo monopolista de Estado é mera tauto-
           logia: a fase de transição é a fase de transição e, consequentemente, está
           repleta de elementos capitalistas. Ao comparar a sucessão de eventos
           históricos iniciada em Outubro de 1917 com a definição de comunismo
           presente n’A Ideologia Alemã (“caçar de manhã, pescar à tarde, cuidar do
           gado à noite, criticar após o jantar, caso se deseje; sem jamais se tornar
           caçador, pescador, pastor ou crítico”, MEW, III, 33), tudo parece dis-
           tante anos-luz não apenas do comunismo, mas também da breve fase
           socialista de transição que deveria conduzir ao comunismo, pois esta
           última resultaria já impregnada, de certo modo, pelas relações sociais
           totalmente novas que é chamada a realizar. Mas desse modo faz-se uso
           acrítico da utopia, reduzindo o presente e o realmente possível a uma
           massa informe sem valor algum.
                Mais uma vez, com relação aos problemas examinados por nós,
           uma abordagem materialista não pressupõe a excomunhão – dada pela
           definição enfática e sagrada de socialismo e comunismo – do evento
           histórico real, mas um questionamento das condições e da concreta
           constelação histórica que estimularam ou possibilitaram tal definição
           enfática do auspicioso regime social. Ao traçar um balanço das revo-
           luções inglesas e francesas, a seguinte indicação de Engels pode ser
           muito esclarecedora: “A fim de garantir as conquistas burguesas já ma-
           duras e prontas para serem colhidas, tornava-se necessário a revolução
           ultrapassar seu escopo (...) Parece ser esta uma das leis da evolução da
           sociedade burguesa” (IDEM, XXII, 301). Não há motivos para subesti-
           mar a metodologia materialista da revolução que se inspirou em Marx
           e Engels. Afinal, toda revolução tende a apresentar-se como se fosse
           a última, ou melhor, como solução para todas as contradições e, por
           consequência, como fim da história. Neste contexto devemos colocar
           a utopia da extinção do Estado, da religião, do mercado, de toda for-
           ma de divisão do trabalho. Porém, a ênfase posta na defasagem entre
           consciência subjetiva dos protagonistas da revolução social e sistema



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