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LOSURDO. PRESENÇA E PERMANÊNCIA
“governo despótico”, o único capaz de eliminar o regime da escravidão
e da servidão da gleba!
Os eventos iniciados em Outubro de 1917 não podem ser corre-
tamente julgados se os separarmos dos dramáticos conflitos interna-
cionais e internos que os acompanharam. Limito-me aqui a dar dois
exemplos. Nas regiões asiáticas, os projetos de emancipação da mulher
efetivados pela jovem União Soviética enfrentaram a violência selva-
gem dos clãs feudais resolvidos a perpetuar, por qualquer meio, uma
condição feminina de tipo servil ou semisservil. Nessa concreta e de-
terminada situação histórica, a liberdade da mulher pressupõe o uso
de mão de ferro sobre uma sociedade civil atrasada. Podemos dar mais
um exemplo: a Revolução de Outubro suscitou na Rússia uma recru-
descência da agitação antissemita, expressa em massacres sangrentos.
Para combatê-la, o novo poder soviético se empenha em uma obra de
propaganda capilar (Lênin pronuncia um discurso gravado em disco de
modo a alcançar também os milhões de analfabetos), mas, ao mesmo
tempo, elabora leis severíssimas, aliás, terroristas. Mais uma vez, pelo
menos durante os primeiros anos do novo regime, a liberdade, ou me-
lhor, a própria sobrevivência dos judeus, foi garantida com mão de ferro
contra a sociedade civil.
Tudo isso pode cheirar a “justificacionismo”, inclusive para de-
terminada esquerda. Mas pode ser interessante ver a posição de Marx
com relação à Revolução francesa. Em seus textos, encontramos uma
contra-história da Inglaterra liberal que o sofisma de Talmon obstina-se
ainda hoje a contrapor em preto e branco à da França revolucionária e
jacobina. Mas, ao contrário, a Inglaterra foi o único país em que formas
de trabalho escravo continuaram a existir em pleno século XIX (MEW,
XXIII, 763), e cuja classe dirigente liberal conduziu, na Irlanda, uma
política tão brutal e terrorista a ponto de resultar “inaudita na Europa”,
encontrando equivalente apenas entre os “mongóis” (IDEM, XVI, 552).
O próprio Gladstone, orgulho da Inglaterra liberal, foi protagonista do
“terrorismo policial” que atingiu a seção irlandesa da Internacional
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