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MARX, CRISTÓVÃO COLOMBO E A REVOLUÇÃO DE OUTUBRO | DOMENICO LOSURDO
Vejamos agora Adam Smith. Nas Lições de Jurisprudência, ele ob-
serva que a escravidão pode ser abolida com mais facilidade sob um
“governo despótico” do que sob um “governo livre”, em que “cada lei é
feita pelos donos [de escravos], os quais nunca deixariam passar uma
medida prejudicial a eles”. De fato, a escravidão é abolida só muitas
décadas depois, e só em seguida a uma guerra sangrenta e a sucessiva
ditadura militar imposta pela União sobre os Estados secessionistas e
escravistas.
Olhando para a Europa oriental, Smith faz uma consideração aná-
loga acerca da servidão da gleba, cuja supressão parece pressupor uma
intervenção “despótica” do poder político central contra os barões, que
agitavam palavras de ordem liberais e que, de qualquer modo – con-
trolando os “livres” organismos representativos –, conseguiam bloquear
qualquer projeto de emancipação dos camponeses. Tudo isso não pode
deixar de nos levar a pensar nos eventos históricos do “socialismo real”.
Com seu realismo, Smith problematiza a fronteira entre liberdade e
opressão. Quem representa a causa da liberdade nos EUA entre 1861 e
1865? Lincoln, que abole o habeas corpus, impõe a conscrição obrigató-
ria e, diante da grande rebelião provocada pela medida, envia um corpo
armado contra Nova Iorque, sufocando pelo terror a sublevação? Ou a
representam os Estados do Sul que invocam Locke e, em nome do di-
reito ao autogoverno e à manutenção da própria identidade cultural e
nacional, rechaçam, enquanto opressiva, a pretensão do governo central
de interferir naquela peculiar forma de propriedade representada pela
escravidão?
Com o olhar voltado tanto para a escravidão quanto para a ser-
vidão da gleba, as Lições de jurisprudência enunciam uma extraordinária
conclusão: “A liberdade do homem livre é a causa da grande opressão
dos escravos. E como eles constituem a parte mais numerosa da popu-
lação, nenhuma pessoa dotada de humanidade desejaria a liberdade
em um país que estabeleça esta instituição”. Que escândalo, aos olhos
da atual apologética liberal, a preferência indiretamente expressa pelo
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