Page 171 - O Poderoso Chefao - Mario Puzo_Neat
P. 171

CAPÍTULO 18
    AMERIGO  BONASERA  morava  apenas  a  alguns  quarteirões  de  seu  estabelecimento
  funerário na Rua Mulberry e assim sempre ia cear em casa. À noite, costumava voltar à sua
  empresa comercial a fim de unir-se respeitosamente às pessoas enlutadas que prestavam sua
  homenagem ao morto que jazia em câmara-ardente em suas salas sombrias.
    Ele sempre se ofendia com as piadas ditas a respeito de sua profissão, os detalhes técnicos
  macabros que eram tão insignificantes. Evidentemente, nenhum de seus amigos, membros de
  sua família ou vizinhos diria tais piadas. Qualquer profissão era digna de respeito para os homens
  que durante séculos haviam ganho o seu pão com o suor de seu rosto.
    Agora, ceando com sua mulher em seu apartamento bem mobiliado, com imagens douradas
  da Virgem Maria com suas velas de vidro vermelho bruxuleando no aparador, Bonasera acendeu
  um cigarro Camel e tomou um repousante copo de uísque americano. A mulher trouxe pratos
  fumegantes de sopa para a mesa. Os dois estavam sós agora; ele mandara a filha morar em
  Boston com a avó, onde ela poderia esquecer a sua terrível experiência e os maus-tratos que
  sofrera dos dois salafrários que Don Corleone havia punido.
    Enquanto tomavam a sopa, a mulher perguntou:
    — Você vai voltar para o trabalho esta noite?
    Amerigo Bonasera acenou afirmativamente com a cabeça. A mulher respeitava o trabalho
  dele, mas não o compreendia. Não compreendia que a parte técnica de sua profissão fosse a
  menos importante. Ele pensava, como muitas outras pessoas, que era pago por sua habilidade em
  fazer o morto parecer tão vivo em seu caixão. E, na verdade, essa sua habilidade era lendária.
  Porém mais importante ainda, mais necessária ainda, era sua presença física no velório. Quando
  a  família  desolada  vinha  à  noite  receber  os  demais  parentes  e  amigos  junto  ao  ataúde  do
  pranteado morto, precisava de Amerigo Bonasera em companhia dela.
    Pois ele era um guia rigoroso para a morte. Com seu rosto sempre sério, embora forte e
  confortador,  sua  voz  firme,  conquanto  abafada  para  um  registro  baixo,  ele  comandava  o  rito
  fúnebre. Podia acalmar a dor que era tão indecorosa, podia repreender as crianças turbulentas
  cujos pais não tinham coragem de castigá-las. Incansável no oferecimento de suas condolências,
  ele jamais era rude. Uma vez que uma família usasse Amerigo Bonasera para despachar um
  morto, voltava repetidamente a usar os seus serviços. E ele nunca, nunca abandonava um de seus
  clientes nessa terrível derradeira noite sobre a terra.
    Geralmente Bonasera permitia-se uma soneca após a ceia. Depois lavava-se e barbeava-se,
  usando  talco  com  abundância  para  disfarçar  a  barba  preta  cerrada.  Lavava  sempre  a  boca.
  Respeitosamente vestia uma roupa de baixo limpa, uma camisa branca lustrosa, a gravata preta,
  uma  roupa  escura  recém-passada  a  ferro,  sapatos  pretos  foscos  e  meias  pretas.  Contudo,  a
  impressão que ele causava era confortante em lugar de sombria. Também conservava o cabelo
  tingido de preto, uma frivolidade inaudita num homem italiano de sua geração; mas não era por
  vaidade. Simplesmente porque o seu cabelo havia tomado um aspecto vivo de sal e pimenta, uma
  cor que lhe parecia indecorosa para a sua profissão.
    Depois que Bonasera acabou a sopa, a mulher pôs diante dele um pequeno bife com algumas
  garfadas de espinafre verde ressumbrando óleo amarelo. Ele comia pouco. Quando terminou,
  tomou uma xícara de café e fumou outro cigarro Camel. Enquanto tomava café, pensou na sua
  pobre filha. Ela nunca mais seria a mesma. Sua beleza externa havia sido restaurada, mas ele
  percebia  nela  o  olhar  de  um  animal  assustado  que  o  tornava  incapaz  de  encará-la.  E  assim
  mandaram-na passar algum tempo em Boston. O tempo curaria as feridas da moça. A dor e o
  terror  não  eram  coisas  tão  finais  como  a  morte,  como  ele  bem  sabia.  Seu  trabalho  o  fizera
  otimista.
    Bonasera acabara de tomar o café quando o telefone da sala de estar tocou. A mulher nunca
  atendia quando ele estava em casa, assim ele se levantou, esvaziou a xícara e apagou o cigarro.
  Enquanto  caminhava  para  o  telefone,  tirou  a  gravata  e  começou  a  desabotoar  a  camisa,
   166   167   168   169   170   171   172   173   174   175   176