Page 219 - O Poderoso Chefao - Mario Puzo_Neat
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de remorso por tê-la deixado tão brutalmente sem uma palavra de despedida. Bastante estranho é
  que a sua consciência jamais doera por ter matado aqueles dois homens; Sollozzo tentara matar-
  lhe o pai, o Capitão McCluskey o desfigurara para toda a vida.
    O  Dr.  Taza  sempre  insistia  com  ele  para  que  fizesse  uma  operação  no  seu  rosto  torto,
  especialmente quando Michael lhe pedia remédios para aliviar a dor, que se tornava cada vez
  pior e mais freqüente à medida que o tempo passava. Taza explicou que havia um nervo facial
  por baixo do olho do qual se irradiava um complexo de nervos. Na verdade, este era o ponto
  preferido pelos torturadores da Máfia, que o procuravam atingir nas faces de suas vítimas com
  um furador de gelo de ponta bem fina. Esse nervo no rosto de Michael tinha sido atingido ou
  talvez houvesse um fragmento de osso perfurado nele. Uma operação num hospital de Palermo
  aliviaria definitivamente a dor.
    Michael  recusou.  Quando  o  médico  perguntou  por  que,  Michael  arreganhou  os  dentes  e
  respondeu:
    — É uma coisa que trago comigo de casa.
    Ele não se importava com a dor, que era de fato uma dor contínua, um pequeno latejo em
  seu crânio, como um aparelho a motor funcionando com um líquido para purificá-lo.
    Já fazia quase sete meses que Michael levava aquela vida ocasionalmente rústica quando
  começou  realmente  a  se  aborrecer,  a  sentir  tédio.  Por  essa  época,  Don  Tommasino  andava
  muito  ocupado  e  raramente  era  visto  na villa.  Estava  tendo  suas  complicações  com  a  “nova
  Máfia” que surgia em Palermo, rapazes que faziam fortuna com a febre de construção após a
  guerra, naquela cidade. Com essa riqueza, eles procuravam invadir os feudos rurais dos antigos
  chefes  da  Máfia  a  quem  desprezivelmente  chamavam  de  Pedro  Bigodudo.  Don  Tommasino
  vivia ocupado, defendendo seu domínio. E assim Michael ficou privado da companhia do velho e
  teve de se contentar com as histórias do Dr Taza, que já começavam a se tomar enfadonhas.
    Certa  manhã,  Michael  resolveu  dar  uma  longa  caminhada  até  as  montanhas  além  de
  Corleone, acompanhado, naturalmente, dos dois pastores guarda-costas. Isso não era realmente
  uma proteção contra os inimigos da Família Corleone. Era simplesmente muito perigoso para
  qualquer pessoa de fora andar passeando sozinha por ali. Era bastante perigoso mesmo para um
  natural do lugar. A região vivia cheia de bandidos, com partidários da Máfia lutando uns contra os
  outros  e  pondo  em  perigo  todo  mundo.  Ele  podia  também  ser  confundido  com  um  ladrão  de
  pagliaio.
    U m pagliaio  é  uma  cabana  coberta  de  palha  erguida  nos  campos  onde  se  guardam  os
  implementos agrícolas ali deixados pelos trabalhadores rurais para que não tenham de carregá-
  los consigo na longa caminhada desde suas casas na aldeia. Na Sicília, o camponês não vive na
  terra que cultiva. Isso é muito perigoso, e qualquer terra arável, se ele a possui, é muito preciosa.
  O camponês mora na aldeia, e ao nascer do sol, começa a sua jornada para ir trabalhar nos
  campos, percorrendo grandes distâncias a pé. Um trabalhador que chegasse no seu pagliaio e o
  encontrasse  saqueado  seria  um  homem  na  verdade  prejudicado.  Ficaria  sem  o  seu  sustento
  naquele dia. A Máfia, ante a impotência da lei, tomou esse interesse pelos camponeses sob a sua
  proteção e resolveu o problema à sua maneira. Encurralava e massacrava todos os ladrões de
  pagliaio.  Era  inevitável  que  alguns  inocentes  sofressem.  Era  possível  que  se  Michael  passasse
  perto de um pagliaio saqueado fosse considerado como o criminoso, a menos que tivesse alguém
  para se responsabilizar por ele.
    Assim, numa manha ensolarada, ele se pôs a caminhar através dos campos seguido de seus
  dois fiéis pastores. Um deles era simplório, quase débil mental, calado como um morto e com o
  semblante tão impassível como um índio. Tinha a constituição pequena, franzina e resistente do
  siciliano típico antes de atingir a gordura da meia-idade. Seu nome era Calo.
    O  outro  pastor  era  mais  despachado,  mais  novo,  e  tinha  visto  alguma  coisa  no  mundo.
  Principalmente  oceanos,  já  que  servira  na  Marinha  italiana  durante  a  guerra  e  tivera  apenas
  tempo bastante para fazer uma tatuagem antes que o navio afundasse e ele fosse aprisionado
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