Page 230 - O Poderoso Chefao - Mario Puzo_Neat
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algumas coisas quando eles tentavam intervir num parto difícil. O marido dela era um próspero
dono de mercearia; agora falecido o pobre coitado, ela o abençoava, embora ele tivesse sido um
jogador de cartas e um mulherengo que nunca pensou em pôr algum dinheiro de lado para os
tempos difíceis. De qualquer modo, numa maldita noite, quando as pessoas honestas já estavam
há muito tempo na cama, alguém bateu na porta de Filomena. Ela não estava de maneira alguma
assustada, era a hora sossegada que os bebês prudentemente escolhiam para entrar com
segurança neste mundo pecador, e assim ela se vestiu e abriu a porta. Lá fora se encontrava
Luca Brasi, cuja reputação, mesmo então, era terrível. Sabia-se também que ele era solteiro. E
assim Filomena ficou logo assustada. Ela pensava que ele tivesse vindo para fazer algum mal a
seu marido, que talvez seu marido tivesse insensatamente se recusado a fazer algum pequeno
favor a Brasi.
Mas Brasi viera numa missão especial. Disse a Filomena que havia uma mulher prestes a dar
à luz, que a casa era um pouco afastada dali e que ela devia ir com ele. Filomena imediatamente
sentiu que havia alguma coisa errada. A cara brutal de Brasi denotava um ar de loucura naquela
noite, ele estava obviamente sob o poder de algum demônio. Ela tentou protestar, alegando que só
atendia às mulheres cuja história conhecesse, mas ele enfiou-lhe na mão um punhado de dólares
verdes e ordenou-lhe asperamente que o acompanhasse. Ela estava muito apavorada para
recusar.
Na rua havia um Ford com um motorista da mesma laia de Luca Brasi. A viagem não durou
mais de trinta minutos e chegaram a uma casa de vigamento de madeira na cidade de Long
lsland bem em cima da ponte. Uma casa para duas famílias, mas agora ocupada exclusivamente
por Brasi e sua quadrilha. Pois havia alguns bandidos na cozinha jogando cartas e bebendo. Brasi
levou Filomena escada acima para um quarto. Na cama achava-se uma linda moça que parecia
irlandesa, com o rosto pintado, o cabelo vermelho e com a barriga inchada como uma porca. A
pobre moça estava tão amedrontada! Quando avistou Brasi, virou a cabeça para o outro lado
aterrorizada, sim, aterrorizada, e na verdade o olhar de ódio no rosto perverso de Brasi era a
coisa mais aterradora que ela já vira na vida. (Aqui Filomena persignou-se novamente.)
Para resumir a história, Brasi saiu do quarto. Dois dos seus homens ajudaram a parteira, e a
criança nasceu, a mãe estava esgotada e caiu num sono profundo. Brasi foi chamado a vir ao
quarto, e Filomena, que tinha enrolado a criança recém-nascida num cobertor que encontrara,
estendeu a trouxa para ele e disse:
— Se você é o pai, tome a criança. Meu trabalho está terminado.
Brasi fixou os olhos nela, maldosamente, a loucura estampada em seu rosto.
— Sim, eu sou o pai — retrucou ele. — Mas não quero que viva ninguém dessa raça. Leve a
criança para o porão e atire-a no forno.
Por um momento, Filomena pensou que não tivesse entendido direito. Ficou embaraçada
com o uso da palavra “raça”. Queria ele dizer isso porque a moça não era italiana? Ou queria
dizer porque a moça era obviamente do tipo mais baixo; uma prostituta, em resumo? Ou queria
dizer que proibia que qualquer coisa provinda dele mesmo vivesse? E então ela teve a certeza de
que aquele homem estava fazendo uma brincadeira cruel. Ela disse em poucas pa lavras.
— A criança é sua, faça o que você quiser.
E tentou entregar a trouxa a ele.
Nessa altura, a mãe esgotada acordou e virou-se para o lado deles, justamente no momento
em que Brasi empurrou violentamente a trouxa, apertando a criança recém-nascida no peito de
Filomena. A moça gritou fracamente:
— Luc, Luc, eu lamento...
E Luca virou-se para ela.
Foi terrível, dizia agora Filomena. Tão terrível. Eram como dois animais enfurecidos. Não
eram humanos. O ódio que um nutria contra o outro irrompeu no quarto. Nada mais, nem
mesmo a criança recém-nascida, existia para eles naquele momento. Contudo, havia ali uma
estranha paixão. Uma voluptuosidade sanguinária, demoníaca, que se percebia que ambos