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aparece em passado, as ruas no CHS eram apropriadas como parte
segundo plano, do universo da casa. Um lugar ocupado por um grupo
em face da “névoa” de moradores que viviam parte de seu cotidiano nas
causada pela falta de calçadas como “se estivessem em casa” (DaMatta, 1997,
segurança e que aparece em p. 55).
todas as conversas, entrevistas e relatos.
A ameaça de perda desses espaços e dessas lembranças
Na casa visitada pelos moradores, a equipe de em centros urbanos como o CHS, só pode ser revertida
Arqueologia recuperou centenas de fragmentos com a ação do grupo. Para Bosi (p. 452):
de louça, cerâmica, vidro, ferro e ossos de animais.
Os auxiliares de campo que faziam parte da equipe Destruída a parte de um bairro onde se prendiam
construíram, de forma espontânea, uma passarela por lembranças da infância do seu morador, algo de si O PROJETO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL
entre as ruínas para facilitar o acesso dos visitantes – morre junto com as paredes ruídas. mas a tristeza
muitos deles seus familiares. do indivíduo não muda o curso das coisas: só o
grupo pode resistir e recompor traços de sua vida
O grupo foi guiado pelas áreas de escavação, onde pôde passada.
conhecer os procedimentos empregados no trabalho,
A convivência com esse grupo ao longo dos meses do
as ferramentas utilizadas e os resultados obtidos. Em
projeto sugere que a recomposição física da paisagem
seguida, os moradores foram levados até uma bancada
por si só não pode “mudar o curso das coisas”, pois as
na qual puderam ver e manusear os diversos materiais
coisas existem em relação às pessoas. Como afirma
encontrados. Os relatos sobre o local e sobre os objetos
Halbwachs (2004, p. 143), “mas se as pedras se deixam
coletados contribuíram para a confirmação das distintas
transportar, não é tão fácil modificar as relações que
funções da casa no passado: residência, escola e
são estabelecidas entre as pedras e os homens”. Se
lavanderia.
a memória é uma construção social realizada no
As reminiscências que afloraram, ainda que permeadas presente, devemos refletir sobre que memórias estão
pelas questões presentes e relativas à violência, amalgamadas ao patrimônio objeto da restauração,
trouxeram imagens das casas de alguns deles, não quais são os impactos causados ao processo memorial
necessariamente aquelas em processo de restauração, quando as “paisagens lembradas” se tornarem
mas as suas casas “oníricas” (Bachelard, 2008, p. 32), “paisagens restauradas”, qual o papel da Educação
primordiais. O espaço desenhado pela memória não Patrimonial nesse contexto? Um programa de
se limita às paredes da unidade doméstica, mas se Arqueologia Pública de longa duração – considerando
prolonga pelas calçadas, onde a lembrança coletiva é também a Educação Patrimonial – poderia colaborar
um emaranhado de histórias particulares, costuradas nessa “reconstrução”, promovendo um fortalecimento
e conectadas a um dado espaço construído por das relações entre os velhos e a nova paisagem criada 173
relações sociais estabelecidas ao longo de décadas. No a partir da restauração.
Programa monumenta – IPhan