Page 30 - TUTELA DE URGÊNCIA E TUTELA DA EVIDÊNCIA, Luiz Guilherme Marinoni, Ed. RT, 2017
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no cenário do direito brasileiro.
A doutrina de Calamandrei é perfeita à Itália de quase cem anos atrás. Obviamente não cabe
questioná-la como (in)correta para o Brasil dos nossos dias. Cabe, isto sim, verificar a sua
oportunidade para o direito processual brasileiro de hoje. Portanto, é preciso lembrar que
Calamandrei escreveu sob a influência de uma cultura jurídico-processual que rejeitava a
possibilidade de execução anterior à declaração e num contexto político em que se tinha consciência
da necessidade de tutela célere dos direitos contra o periculum in mora.
Em sua Introduzione allo Studio Sistematico dei Provvedimenti Cautelari, Calamandrei foi
formalmente fiel à regra da nulla executio sine titulo. Não obstante, ao classificar os provvedimenti
cautelari, falou em a) provvedimenti istruttori anticipati, b) provvedimenti volti ad assicurare la
esecuzione forzata, c) anticipazione di provvedimenti decisori – aí situando a esecuzione provvisoria – e
em d) cauzioni processuali. O que confere nota distintiva à obra de Calamandrei é a classificação da
anticipazione di provvedimenti decisori no gênero dos provvedimenti cautelari. 30
Calamandrei confessa que a relação de instrumentalidade, no caso de anticipazione di
provvedimenti decisori, é profundamente diversa daquela que se tem na hipótese de provvedimenti
volti ad assicurare la esecuzione forzata, chegando a admitir que, no caso de execução provisória
contra o periculum in mora, a função cautelar pode configurar-se “in due diversi modi”: em alguns
casos, o dano que se trata de evitar é o que deriva da demora na satisfação do direito, de modo que,
funcionando como meio para acelerar esta satisfação mediante a imediata execução forçada, a
execução provisória tem lugar tipicamente no grupo da anticipazione di provvedimenti decisori
(gruppo c); outras vezes, o dano que se almeja evitar é o que pode derivar da fuga ou dispersão dos
bens do devedor, enquanto pende o juízo de apelação; e, em tal caso, funcionando como mezzo per
assicurare (non per accelerare) a execução forçada futura, a execução provisória se coloca entre os
provvedimenti volti ad assicurare la esecuzione forzata (gruppo b). 31
Como é óbvio, Calamandrei não enxergou na decisão antecipada a função de tutela do direito
material; limitou-se a afirmar a existência de uma “decisione anticipata e provvisoria del merito,
destinata a durare fino a che a questo regolamento provvisorio del rapporto controverso non si
sovrapporrà il regolamento stabilmente conseguibile attraverso il più lento processo ordinario”. 32
Sublinhe-se que Calamandrei não poderia, nem se quisesse, estar atento à necessidade de
individualização das tutelas dos direitos que podem ser prestadas mediante cognição sumária, uma
vez que a sua época é anterior a do Estado cujo escopo é tutelar os direitos. Aliás, a elaboração
dogmática da época de Calamandrei era servil à ideia de que o processo deve ficar distante das tintas
do direito substancial, de modo que os provimentos de cognição sumária certamente não podiam ser
classificados a partir de indicativos de tutela do direito material, mas apenas de acordo com critérios
processuais, como o da provisoriedade do provimento.
Calamandrei, ciente da necessidade de tutela célere contra o periculum in mora, foi obrigado a
admitir a antecipação da tutela como cautelar, na medida em que não tinha outra base de direito para
justificar a concessão de tal forma de tutela. Uma tutela de cognição sumária contra o perigo que não
fosse cautelar, além de destituída de amparo legal, seria vista como tutela executiva, o que certamente
representaria um atentado contra a regra da nulla executio sine titulo. Significa que a construção de
Calamandrei, ao misturar tutela cautelar e tutela satisfativa sumária, merece elogios do ponto de vista
da contribuição para a efetividade do processo do seu tempo. Como todo e qualquer jurista,
Calamandrei trabalhou com as possibilidades teóricas que tinha em mãos.
Hoje, no entanto, o processualista vive à luz do Estado constitucional, cujo dever é dar tutela aos
direitos fundamentais e, por consequência, desincumbir-se da sua missão de prestar tutela