Page 29 - TUTELA DE URGÊNCIA E TUTELA DA EVIDÊNCIA, Luiz Guilherme Marinoni, Ed. RT, 2017
P. 29

Não obstante a rebelião da prática em relação à inefetividade do processo civil, antes da instituição
                  da  tutela  antecipada  (em  1994)  no  Código  de  Processo  Civil  de  1973  havia  grande  resistência  dos
                  tribunais  e  da  doutrina  à  admissão  de  tutela  satisfativa  do  direito  mediante  o  emprego  da  técnica
                  cautelar. Anote-se, por exemplo, o que dizia Humberto Theodoro Júnior: “Por outro lado, como bem
                  adverte Lopes da Costa, ‘a medida cautelar não deve transpor os limites que definem a sua natureza
                  provisória’.  Seu  fito  é  apenas  garantir  a  utilidade  e  eficácia  da  futura  prestação  jurisdicional
                  satisfativa. Não pode, nem deve, a medida cautelar antecipar a decisão sobre o direito material, pois não
                  é de sua natureza autorizar uma espécie de execução provisória”.  Os tribunais, seguindo esta mesma
                                                                          27
                  direção, afirmavam: “Não deve ser concedida a medida cautelar inominada em que o autor pretende
                  lhe sejam franqueadas as dependências de um clube para realização de festa de casamento, em virtude
                  do  teor  satisfativo  de  tal  pedido,  sendo  que  a  sua  concessão  implicaria  a  perda  do  objeto  da  ação
                  principal”. 28

                     Ainda que a técnica cautelar tenha sido utilizada para permitir o alcance da tutela satisfativa sob
                  cognição sumária – ou da tutela antecipada –, importa ter claro que isto não era aceito pelos tribunais e
                  pela doutrina, que não admitiam o uso da técnica cautelar para o fim de satisfação do direito, ainda que
                  tal modo de proceder fosse indispensável à realização do direito fundamental de ação.

                     Bem  por  isso,  a  necessidade  de  tutela  antecipada  para  a  efetiva  tutela  dos  direitos  levou  o
                  legislador a inserir nova norma (art. 273) no Código de Processo Civil de 1973. Esta norma, introduzida
                  no código em 1994, abriu oportunidade para o requerimento de tutela antecipada em caso de perigo
                  de dano  diante de qualquer espécie de situação material litigiosa.
                         29
                     Isso  significa  que,  para  a  adequada  e  honesta  compreensão  da  teoria  da  tutela  antecipada,  é
                  imprescindível ter muito claro que a introdução da tutela antecipada no código de 1973 foi necessária
                  não  apenas  em  razão  das  novas  situações  de  direito  material  que  se  mostraram  carentes  de  tutela
                  satisfativa sumária, mas principalmente porque os tribunais e a doutrina não admitiam a prestação de
                  tutela sumária satisfativa – de tutela antecipada – com base na técnica cautelar.

                     1.6. As razões de Calamandrei e o apego irrefletido da doutrina

                     Não haveria motivo para discutir aqui a doutrina de Calamandrei sobre tutela cautelar. Trata-se de
                  doutrina consolidada nas primeiras décadas do século passado em situação política particular. O que
                  realmente aqui importa é deixar claro algo que costuma ser encoberto pela teimosia das pessoas que
                  discutem sobre o direito. Há quem imagine que uma doutrina deve ser discutida a partir dos critérios
                  do  falso  ou  do  errado,  como  se  pudesse  existir  uma  teoria  certa  ou  verdadeira.  Uma  doutrina  se
                  submete ao critério do oportuno, na medida em que sempre é elaborada diante de um sistema legal e
                  de  uma  situação  concreta  em  determinado  tempo  e  espaço,  dotada  de  especificidades  sociais,
                  culturais,  religiosas  e  políticas.  Na  verdade,  uma  doutrina  não  apenas  só  pode  ser  vista  como
                  “oportuna”;  a  doutrina  só  pode  ser  assim  pensada  quando  o  intérprete  ou  o  jurista  considera  os
                  valores que a inspiraram diante dos valores da época em que se pretende vê-la aplicada. O intérprete
                  não pode abdicar desta análise se não quer perder tempo ou falar no vácuo, sem trazer nada de útil à
                  realidade  em  que  vive.  Sucede  que  muitos,  ainda  que  sem  perceber,  valem-se  das  doutrinas  como
                  abstrações  teóricas  –  despidas  de  contato  com  a  realidade  –  para  sustentar  suas  teses.  É  quando  a
                  doutrina  é  usada  como  argumento  de  autoridade  e  não  para  viabilizar  uma  elaboração  teórica
                  contextualizada. Nesses casos a doutrina é utilizada para falsear a realidade, ou melhor, para conferir
                  a alguma proposição a ser elucidada pelo teórico a qualidade de correta, como se a circunstância de
                  um conceito ter sido formulado por alguém de grande prestígio o credenciasse a “verdadeiro” para a
                  eternidade,  sem  com  que  os  mortais  do  porvir  pudessem  discuti-lo,  não  obstante  vivendo  em  uma
                  época sequer imaginável àquele que o elaborou. De modo que é absolutamente primário o argumento
                  que toma a doutrina de Calamandrei como justificativa da unificação das tutelas cautelar e antecipada
   24   25   26   27   28   29   30   31   32   33   34