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Aventuras de uma filha no quarto dos pais















        Até a noite da quarta-feira passada, para mim eram três os grandes mistérios do universo: a
        existência da “partícula de Deus”, se Capitu traiu ou não Bentinho, o paradeiro dos ossos de
        Ulysses Guimarães. De repente, tudo mudou. E eu descobri que havia apenas um mistério

        sobre o qual valia a pena me debruçar. E não apenas isso, que este era todo o mistério
        possível desde que me tornei uma bípede precoce e tresloucada, batendo a cabeça pelas

        paredes do apartamento da família, aos nove meses de vida. Aconteceu como costumam
        acontecer  os  grandes  acontecimentos.  Sem  anúncios  do  Banco  Central,  sem  qualquer
        menção no calendário maia. Só eu e a minha solidão diante do universo insondável.

           Vou contar como se passou.
          Meu pai estava na sala de cirurgia. O médico tinha um sobrenome alemão que soava como

        um espirro daqueles fortes. Não sei por qual razão, mas me parecia que um médico com um
        sobrenome desses seria capaz de arrancar a hérnia do meu pai pelo pescoço, com apenas
        um puxão. Por causa disso, comentei que ele faria a cirurgia com um pé nas costas. Meu

        marido respondeu que poderia passar a vida tentando botar um pé nas costas sem chance
        de êxito. Eu pensei melhor, fiz algumas tentativas vãs e concluí que também não conseguiria.

        Ultimamente anda difícil até botar um pé depois do outro, que dirá nas costas. De onde veio
        uma expressão tão estúpida? Esse debate de primeira grandeza consumiu uns 20 minutos
        de nossa espera.

          Eu vestia uma camiseta da Mafalda, a célebre personagem do argentino Quino — e nem
        sabia que a Mafalda completaria 50 anos em algumas horas. Se soubesse, poderia pensar

        que era um sinal de que algo irreversível aconteceria. Mas só soube depois. Então, estou em
        dúvida se era ou não um sinal, assim como não se sabe se ela estava mesmo de aniversário
        ou a efeméride só acontecerá em 2014. Sim, porque sinais e aniversários são coisas muito

        sérias.
          O  fato  é  que,  quando  meu  pai  voltou  da  sala  de  recuperação,  só  eu  e  minha  mãe  o

        esperávamos. Minha mãe era a “acompanhante”, e eu a “visitante” que deveria ter partido
        ao final do horário de visitas. Nunca lidei bem com crachás, mas até aquele momento eu
        ignorava o quanto eles podem ser proféticos. Só mais tarde eu saberia que era clandestina

        de outras maneiras naquele quarto.
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