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Pronto, com a minha autoridade de filha-que-veio-de-São-Paulo-para-ajudar-a-cuidar-do-
pai, tinha atrapalhado de novo. Toda satisfeita, fingi que era adulta. Mas continuava lá, com
pernas enfiadas em meias soquetes, que não alcançavam o chão. Meu pai quis assistir ao
futebol na TV. Minha mãe, que em assuntos futebolísticos até hoje não sabe ao certo a qual
time pertence aquele jogador de preto com apito, narrava o que se passava em campo, já
que meu pai não podia levantar a cabeça por causa da anestesia. “Está bem bom o jogo”,
dizia ela. “Num canal, o Corinthians está jogando com o CAZ. E, no outro, o Vasco joga com
o LIB.” Mais pra frente, animava-se, empapando o Galvão Bueno de inveja: “Estão correndo
bastante!”. E eu, em progressiva regressão etária. “Pai, por que tu não dormes?” E ele, com
os olhos estalados de quem não queria perder um segundo de vida recém-conquistada.
“Não! Quero ficar bem aceso!”
Só na manhã seguinte, depois de uma longa jornada noite adentro, eu descobri o óbvio.
Uma filha — ou um filho — sempre sobra no quarto dos pais. Qualquer quarto. Mesmo um
de hospital. Se não sobra, algo está errado.
Dali em diante, quando o sol baixava, eu fechava a porta sem fazer alarde, com a leve
impressão de que já ia tarde. E partia pelo corredor, com a Mafalda de volta à camiseta, o
crachá de “visitante” no peito e pernas de novo compridas ecoando passos no chão.
O amor dos meus pais deverá permanecer para sempre um mistério. A partícula Bóson de
Higgs poderá ser comprovada. Machado de Assis talvez um dia dê um safanão no “espírito
Lucius” e faça Zibia Gasparetto psicografar se aqueles olhos de ressaca eram traidores de si
ou de Bentinho. E um dia até os ossos de Ulysses Guimarães poderão ser encontrados. Mas
o amor dos meus pais deverá permanecer um mistério.
É fácil compreender o desamor. O amor, não. O amor é um enigma.
19 de março de 2012