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o melhor amigo 40 anos atrás. O que fazer agora que a velhice lhe deu a possibilidade de
                                                                   escolher o que lembrar e o que esquecer?

          A escolha de Albert é um ato completo de amor. Ele decide sofrer a cada dia — e dia após
        dia — o impacto da notícia de que Jeanne tem um câncer e que vai morrer em breve. Apesar
        de ser talvez a notícia mais brutal de uma existência inteira, é a forma que ele encontra de

        estar com ela, de não a deixar sozinha nesse momento, de viver essa dor junto com a mulher
        que ama, mesmo que ela nunca saiba disso. Escolher lembrar quando podia simplesmente

        esquecer é a forma que Albert encontra de amar Jeanne mais e melhor — até o fim.
          Se escolhe lembrar a doença e a morte de Jeanne, Albert escolhe esquecer a traição de
        Jeanne. Depois de dar muitas voltas na casa e em si mesmo, ele rasga a página do diário na

        qual relata a descoberta, a amassa e a guarda no bolso. Antes, porém, conta a Jean que ele
        também tinha sido traído pela própria mulher e pelo melhor amigo. Assim, Albert lega a Jean

        uma memória que o amigo pode superar, mas não esquecer. Albert pode ter feito isso tanto
        por  sentimento  de  lealdade  quanto  pelo  sentimento  de  vingança,  na  medida  em  que  o
        temperamento explosivo de Jean é bem conhecido. Ou ainda por acreditar que Jean tem o

        direito de decidir por si mesmo como quer lidar com essa memória. Mas ele, Albert, escolhe
        esquecer. E este, ainda que de uma forma mais tortuosa, é um ato de amor tanto pela mulher
        quanto pelo amigo.

          Viver, não apenas para os velhos, é uma constante escolha entre o que lembrar e o que
        esquecer. Ainda que para isso a maioria de nós tenha de travar um embate feroz com nossos

        fantasmas antes de conseguir arrancar uma página espinhosa. Alguns envenenam a própria
        vida  ao  fixar-se  numa  lembrança  mais  letal  que  cianureto,  condenando-se  a  um  eterno
        presente  congelado,  o  que  é  um  tipo  de  morte.  E  outros  perdem  essa  mesma  vida  ao

        transformá-la  na  fuga  incessante  de  algo  que  só  poderão  esquecer  se  primeiro  tiverem
        lembrado e enfrentado como lembrança.

          Ainda que nossas escolhas em torno da memória sejam não mais difíceis do que a de
        Albert, mas seguramente mais demoradas, nossa existência é determinada por elas. Tanto
        na esfera pessoal quanto na pública. É uma escolha na esfera pública a decisão de o que fazer

        com a memória que está em jogo na Comissão Nacional da Verdade, por exemplo, ao apurar
        os  crimes  da  ditadura.  E  nesta,  em  minha  opinião,  é  preciso  lembrar  —  com  todas  as
        consequências implicadas nesse gesto — para que o país possa seguir adiante.

           Assim como é uma escolha na esfera pessoal o lugar e o tamanho que cada um dá a uma
        determinada experiência nos muitos mal entendidos entre pais e filhos. É por preferir seguir

        lembrando uma ausência, uma humilhação ou um equívoco, dia após dia como se fosse o
        primeiro, em vez de lidar, transformar em marca e então esquecer — ou pelo menos dar à
        experiência um lugar e um tamanho mais compatíveis com o movimento da vida — que
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