Page 625 - As Crônicas de Nárnia - Volume Único
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–  Uma  palavrinha,  dona  –  disse  ele,  mancando  de  dor  –,  uma
                  palavrinha: tudo o que disse é verdade. Sou um sujeito que gosta logo de
                  saber tudo para enfrentar o pior com a melhor cara possível. Não vou negar
                  nada do que a senhora disse. Mas mesmo assim uma coisa ainda não foi
                  falada.  Vamos  supor  que  nós  sonhamos,  ou  inventamos,  aquilo  tudo  –
                  árvores, relva, sol, lua, estrelas e até Aslam. Vamos supor que sonhamos:
                  ora, nesse caso, as coisas inventadas parecem um bocado mais importantes
                  do que as coisas reais. Vamos supor então que esta fossa, este seu reino,
                  seja o único mundo existente. Pois, para mim, o seu mundo não basta. E
                  vale muito pouco. E o que estou dizendo é engraçado, se a gente pensar
                  bem.  Somos  apenas  uns  bebezinhos  brincando,  se  é  que  a  senhora  tem
                  razão, dona. Mas quatro crianças brincando podem construir um mundo de
                  brinquedo que dá de dez a zero no seu mundo real. Por isso é que prefiro o
                  mundo de brinquedo. Estou do lado de Aslam, mesmo que não haja Aslam.
                  Quero  viver  como  um  narniano,  mesmo  que  Nárnia  não  exista.  Assim,
                  agradecendo sensibilizado a sua ceia, se estes dois cavalheiros e a jovem

                  dama estão prontos, estamos de saída para os caminhos da escuridão, onde
                  passaremos nossas vidas procurando o Mundo de Cima. Não que as nossas
                  vidas devam ser muito longas, certo; mas o prejuízo é pequeno se o mundo
                  existente é um lugar tão chato como a senhora diz.
                         – Boa! Viva! Cem por cento, Brejeiro! – gritaram Eustáquio e Jill.

                         Mas ouviu-se de súbito a voz do príncipe:

                         – Vejam! A feiticeira!
                         Quase ficaram de cabelos em pé.

                         O  instrumento  caíra-lhe  das  mãos.  Os  braços  pareciam  ter  entrado
                  para  dentro  do  corpo.  As  pernas  estavam  entrelaçadas.  Os  pés  tinham
                  desaparecido.  A  cauda  do  vestido  foi-se  engrossando  e  acabou  sólida,
                  juntando-se com a coluna de suas pernas entrelaçadas. E essa coluna era
                  mole,  revirando-se,  como  se  não  possuísse  articulações.  Sua  cabeça  era
                  empurrada  para  trás,  enquanto  o  nariz  ia  ficando  mais  comprido,  mais
                  comprido; as outras partes do rosto foram sumindo, menos os olhos, agora
                  uns olhos imensos e chamejantes, sem sobrancelhas nem cílios. Tudo isso
                  exige  tempo  para  ser  escrito,  mas  aconteceu  tão  depressa  que  só  houve
                  tempo de ver. Antes que se pudesse fazer qualquer coisa, a transformação
                  estava completa: a grande serpente, verde como o veneno, grossa como a
                  cintura de Jill, já enrolara três anéis de seu repulsivo corpo nas pernas do

                  príncipe. Rápida como um relâmpago, deu um outro bote, tentando agarrar
                  o braço que segurava a espada. Mas Rilian ergueu os braços, safando-se; o
                  nó vivo apertou seu peito, pronto para partir-lhe as costelas.
                         O  príncipe  agarrou  o  pescoço  da  criatura  com  sua  mão  esquerda,
                  tentando  apertá-lo  até  sufocá-la.  A  cara  da  feiticeira  (se  é  que  se  pode
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