Page 248 - O Poderoso Chefao - Mario Puzo_Neat
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Jules foi até o bar e preparou outra bebida.
— Que tal, Johnny, você vai internar Nino?
— Não sei — respondeu Johnny.
Jules tomou uma bebida rápida no bar e encheu o copo novamente.
— Você sabe, é uma coisa engraçada, a gente pode fumar até morrer, beber até morrer,
trabalhar até morrer e mesmo comer até morrer. Mas tudo isso é aceitável. A única coisa que a
gente não pode fazer medicamente é se estrepar até morrer, e é aí que se põem todos os
obstáculos.
Ele fez uma pausa para terminar a sua bebida e continuou:
— Mas até isso é complicação, principalmente para as mulheres. Tive clientes que não
podiam mais ter filhos. “Ë perigoso”, eu dizia a elas. “Você pode morrer”, eu dizia a elas. E um
mês depois elas apareciam, com as faces inteiramente rosadas, dizendo: “Doutor, penso que
estou grávida”, e com toda a certeza era verdade. “Mas é perigoso”, eu dizia a elas. Minha voz
costumava ter expressão naquela época. E elas sorriam para mim, dizendo: “Mas meu marido e
eu somos católicos fervorosos.”
Ouviu-se uma batida, e dois garçons entraram empurrando um carrinho cheio de comida e
bules de cafés de prata. Tiraram uma mesa portátil da parte de baixo do carrinho e a montaram.
Depois Johnny os dispensou.
Sentaram-se à mesa e comeram os sanduíches quentes que Lucy pedira, acompanhados do
café. Johnny recostou-se na cadeira e acendeu um cigarro.
— Então, você gosta de salvar vidas. Como é que você se tornou um especialista em abortos?
Lucy desabafou pela primeira vez.
— Ele queria ajudar as moças em dificuldades, moças que poderiam cometer suicídio ou
fazer alguma coisa perigosa para se livrar da criança.
Jules sorriu para ela e suspirou:
— Não é assim tão simples. Tornei-me cirurgião finalmente. Eu tinha boa mão, como se diz
vulgarmente. Mas eu era tão bom que tinha medo de mim mesmo. Eu abria a barriga de um
pobre coitado e sabia que ele ia morrer. Eu operava e sabia que o câncer, ou tumor, voltaria, mas
eu os mandava embora com um sorriso e um bocado de conversa mole. Vinha uma pobre
mulher e eu cortava-lhe um seio. Um ano depois, ela voltava e eu cortava-lhe o outro seio. Um
ano depois disso, eu catava nas suas entranhas como a gente cata as sementes de uma melancia.
Depois de tudo isso, ela morria de qualquer modo. Enquanto isso, os maridos continuavam a
telefonar e perguntar: “Que é que mostram os exames?”
Jules fez uma pausa e prosseguiu:
— Assim, contratei outra secretária apenas para atender esses telefonemas. Eu só via a
paciente quando ela estava completamente preparada para exame, testes ou operação. Eu
gastava o mínimo tempo possível com a vítima porque, afinal de contas, era um homem
ocupado. E finalmente eu permitia que o marido falasse comigo dois minutos. “É o fim”, dizia
eu. E eles nunca queriam ouvir esta última palavra. Compreendiam o que significava, mas nunca
a ouviam. Pensei a princípio que inconscientemente eu baixava a voz ao pronunciar a última
palavra, assim eu conscientemente passei a dizê-la mais alto. Mas eles continuavam a não ouvi-
la. Um sujeito chegou a perguntar: “Que diabo está dizendo você? Não estou entendendo.”
Jules começou a rir, depois continuou:
— Assim, passei a fazer abortos. Interessante e fácil, todo mundo feliz, é como lavar os
pratos e deixar a pia limpa. Esta era a minha classe. Eu gostava disso, gostava de praticar abortos.
Não acredito que um feto de dois meses é um ser humano, portanto não há problemas aí. Eu
ajudava jovens solteiras e mulheres casadas que se encontravam em dificuldade, e fazia bom
dinheiro. Estava longe das linhas de frente. Quando me apanharam senti-me como um desertor
que tivesse sido preso. Mas tive sorte, um amigo mexeu os pauzinhos e conseguiu safar-me, mas
agora os grandes hospitais não me deixam operar. Assim, estou aqui. Dando bons conselhos
novamente, dos quais ninguém quer tomar conhecimento como nos velhos tempos.