Page 23 - TUTELA DE URGÊNCIA E TUTELA DA EVIDÊNCIA, Luiz Guilherme Marinoni, Ed. RT, 2017
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poder convencer o demandado a cumprir, foi repudiada pelo art. 1.142 do Código Napoleão em nome
                  dos princípios da liberdade, da defesa de personalidade e da autonomia da vontade.

                     Nesta dimensão, a tutela destinada a impedir a violação do direito não era admitida não apenas
                  porque se supunha que os direitos podiam ser adequadamente tutelados após a ocorrência do dano
                  mediante  o  pagamento  de  indenização,  mas  também  porque  uma  tutela  jurisdicional  anterior  à
                  prática de qualquer ato contrário ao direito era vista como inconcebível interferência estatal sobre a
                  esfera da liberdade e da autonomia do indivíduo.

                     Nesta época, o Estado nem mesmo tinha fundamento para constranger a vontade daquele que já
                  tinha inadimplido. Portanto, a possibilidade de tutela estatal capaz de atuar sobre a vontade de alguém
                  que sequer havia violado um direito era inimaginável. Aliás, Lodovico Barassi, já em meados do século
                  XX, confessou que a “tutela puramente preventiva”, “certamente la più energica”, seria também “la più
                  preoccupante,  come  è  di  tutte  le  prevenzioni  che  possono  eccessivamente  limitare  l’umana
                  autonomia”. 4

                     Na concepção da doutrina processual clássica, a sentença declaratória prestava tutela preventiva. A
                  sentença declaratória era a única técnica processual capaz de outorgar tutela preventiva no processo
                  civil  mais  antigo.  Gian  Antonio  Micheli,  em  conferência  pronunciada  em  importante  congresso
                  internacional  de  direito  comparado  que  versou  sobre  as  tutelas  preventivas,  incluiu  a  tutela
                  declaratória no gênero tutela preventiva, dizendo que “a primeira figura de ação preventiva é aquela
                  da ‘action  en  fixation  de  droit’  (ação  declaratória),  admitida  para  a  obtenção  da  declaração  de  um
                  direito  quando  este,  embora  não  tenha  sido  violado  ou  judicialmente  contestado,  torna-se
                  objetivamente  incerto  em  sua  existência  ou  conteúdo,  na  medida  em  que  é  discutido  ou  não
                  reconhecido pelos outros”. 5

                     A  tutela  declaratória  realiza-se  com  a  prolação  da  sentença  que,  contendo  um  juízo  meramente
                  declaratório,  é  revestida  pela  coisa  julgada  material.  A  sentença  declaratória  dá  ao  autor  apenas  a
                  vantagem de que a relação jurídica, que até então era controvertida, não mais poderá ser discutida.
                  Entretanto,  tal  sentença  é  incapaz  de  obrigar  alguém  a  fazer  ou  deixar  de  fazer  alguma  coisa  em
                  virtude da declaração que contém.  A sentença declaratória não tem capacidade para inibir o ilícito ou
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                  tutelar de forma realmente preventiva os direitos. 7
                     Na  verdade,  a  confusão  entre  tutela  declaratória  e  tutela  preventiva,  posta  à  luz  pela  doutrina
                  chiovendiana,   teve  origem  em  uma  exigência  de  construção  sistemática.  A  doutrina  utilizou  o
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                  argumento  de  que  a  existência  de  uma  sentença  (declaratória)  anterior  à  violação  demonstrava  a
                  autonomia da ação, uma vez que nesta hipótese o autor não precisaria ter direito violado para exercer
                  o direito de ação.  A ação declaratória, por estar em contraposição à condenação, seria preventiva.
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                     Além disto, como a doutrina clássica formou-se sob a influência de um Estado de Direito de matriz
                  liberal, marcado por uma acentuação dos valores de liberdade individual em relação aos poderes de
                  intervenção estatal, ela não podia conceber uma tutela preventiva que dependesse de meio executivo
                  que  constrangesse  a  vontade  do  demandado.  Foi  por  isto  que  circunscreveu  a  tutela  preventiva  à
                  sentença  declaratória.  Na  verdade,  a  tutela  declaratória,  enquanto  tutela  que  regula  apenas
                  formalmente  uma  relação  jurídica  já  determinada  em  seu  conteúdo  pela  autonomia  privada,   era
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                  ideal aos valores do Estado liberal.  Já a tutela preventiva, vista como tutela capaz de inibir a violação
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                  do direito, era incompatível com os pressupostos desse modelo de Estado.
                     Tudo isto quer dizer que, no direito processual do início do século XX, não existia tutela realmente
                  preventiva. Seja porque se supunha que os direitos podiam ser ressarcidos em pecúnia, seja porque se
                  entendia que o Estado não podia atuar previamente à violação do direito, seja ainda porque o Estado
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