Page 82 - TUTELA DE URGÊNCIA E TUTELA DA EVIDÊNCIA, Luiz Guilherme Marinoni, Ed. RT, 2017
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ferro” sem patrimônio para lesar, sem qualquer preocupação, direitos da personalidade – por
exemplo.
Não admitir a prisão como forma de coerção indireta é aceitar que, em determinadas situações, o
processo não terá efetividade, e, assim, que nestas hipóteses o ordenamento jurídico estará apenas
proclamando os direitos. Soará absolutamente falsa e demagógica – por exemplo – a afirmação da
Constituição Federal no sentido de que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder
público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (art.
225, caput), se não for possível – obviamente quando outro meio executivo não se mostrar adequado – a
utilização da prisão como meio de coerção indireta para tutelá-lo. Seria o mesmo do que interpretar
tal norma constitucional como se ela dissesse que o meio ambiente, embora fundamental para a sadia
qualidade de vida e para as futuras gerações, infelizmente não pode ser efetivamente tutelado em face
de um réu que não se importa com os efeitos da multa. Ora, essa interpretação seria, para dizer o
mínimo, incoerente.
A doutrina contemporânea, consciente da relevância de certos direitos de natureza não
patrimonial, não pode ver na norma constitucional que proíbe a prisão por dívida uma porta aberta
para a expropriação de direitos fundamentais para o homem.
Em uma interpretação realmente atenta aos direitos fundamentais e de acordo com a moderna
hermenêutica constitucional, não há como enxergar apenas o que há de negativo na utilização da
prisão. Se ela constitui violência inconcebível em face de dívidas em sentido estrito, não há como
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deixar de se perceber o seu lado positivo diante da necessidade de tutela inibitória e de prestações que
não dependam do desembolso de dinheiro, mas apenas do comportamento do demandado. 189
Essa interpretação deixa de lado o conceito mítico de que a prisão civil é um simples atentado
contra a liberdade dos cidadãos e propõe que se veja, ao lado da proibição da prisão civil por dívida
pecuniária, a possibilidade do seu uso para impedir a expropriação dos direitos.
A forma de interpretação que não admite o uso da prisão como meio coercitivo constitui um
método hermenêutico clássico, não suficiente quando comparado aos métodos hermenêuticos
modernos, absolutamente necessários quando o que se tem a interpretar, diante das características
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da sociedade contemporânea e da importância que nela assumem os direitos fundamentais, é um
contexto de grande riqueza e muita complexidade. Não sendo o caso de apenas considerar o texto da
norma, como se ela estivesse isolada do contexto, é necessário recorrer ao método hermenêutico-
concretizador.
o
Deparando-se com a norma do art. 5 , LXVII, da Constituição Federal, o intérprete deve estabelecer
a dúvida que a sua interpretação suscita, isto é, se a norma veda o uso da prisão como meio de coerção
indireta ou somente a prisão por dívida em sentido estrito. A partir daí, verificando que a norma
aponta para dois direitos fundamentais, ou seja, para o direito à efetividade da tutela jurisdicional e
para o direito de liberdade, deve investigar o que significa dar aplicação a cada um deles. Concluindo,
a partir da análise da própria razão de ser destes direitos, que a sua aplicação deve ser conciliada ou
harmonizada, não há como deixar de interpretar a norma no sentido de que a prisão deve ser vedada
quando a prestação depender da disposição de patrimônio, mas permitida para a jurisdição poder evitar
– quando a multa e as medidas de coerção direta não se mostrarem adequadas – a violação de um
direito.
Note-se que essa interpretação, além de considerar o contexto, dá ênfase aos direitos fundamentais,
realizando a sua necessária harmonização para que a sociedade possa ver a sua concretização nos