Page 19 - 5
P. 19
Manuel Abranches de Soveral FRAGMENTA HISTORICA
sendo dos milhores patrimonios que tinha que é pior, serviu-se dele para explorar este
59
desembargador neste reino ho qual lhe fiquara seu conselheiro, pois não lhe fez as mercês
de seus antecesores he agora m menos que, pelo seu testemunho, constantemente
to
cõtairo de m outros que comecando de seruir lhe ia prometendo e adiando…
tos
s. a. sem nada tem agora mais quelle”. Cristóvão Mendes de Carvalho avulta
Não raras vezes Cristóvão Mendes de Carvalho aqui, assim, como representante de uma
refere os serviços que fez a mando de D. João mentalidade medieval em extinção, e daí a
III à custa da sua própria fazenda, pagando importância do seu testemunho. De resto, fica
do seu bolso não só as suas despesas mas nele claro o rigor das suas alçadas e auditorias,
também a de todos os funcionários reais que o com enormes vantagens para o tesouro real,
acompanhavam nessas missões! 56 o que lhe deve ter criado muitos inimigos
O seu código, bem enraizado na tradição da por todo o país, não só nos fiscalizados e
velha nobreza, não lhe permitia “fazer contas” penalizados pela sua acção contra os conluios,
com o rei como qualquer merceeiro, dizendo em prol das finanças públicas e até do alívio
60
mesmo “q ho q elle tinha tudo era de s. a” e de indevidas cargas fiscais sobre o povo , mas
que “na verdade elle pretendeo sempre mais
ho serviço de s. a. q ho interese de sua fazenda”. 59 Esta é, inegavelmente, a ideia que ressalta de forma
O serviço ao rei era uma obrigação, que no mais pungente da carta do Dr. Cristóvão Mendes de
entanto merecia recompensa ou mercê. Este Carvalho, sendo lapidar a forma como termina: D. João
III dera-lhe “sempre esperancas de ho satisfazer muito
era o velho código da nobreza. bem e lhe fazer m mercē como lhe elle merecia pollos
57
ta
tos
Mas D. João III, rodeado de uma nova elite m e bõs seruicos q sempre lhe fizera”, mas nunca o
compensara sequer das perdas que tivera no seu
administrativa que enriquecia nas suas serviço, pelo que pedia justiça ao novo rei, de forma a
costas , parece ter tido dificuldade em “descarregarem a alma delrei que está em gloria que
58
e
entender a honorabilidade deste código ou, o parece nisto estar ēcarregada por lhe não fazer m
alguã de seus seruicos”. Ao longo de toda a petição,
Cristóvão Mendes refere várias situações em que foi
56 Referindo variadíssimas vezes “ho que gastou de sua enganado pelo rei, sendo risível a situação que conta,
to
fazenda”, fazendo o serviço real “cõ m custo e perda de quando o rei lhe deu uma comenda da Ordem de Cristo
sua fazēda”, “sem receber mercē nē satisfação do que dizendo que valia 60.000 reais de renda, pedindo-lhe
gastaua”, diz a certo passo que “sempre daua de comer em troca que desistisse da tença de 20.000 reais que
aos oficiais de s. a. que cõ elle andauam”, repetindo D. Manuel lhe dera com o hábito, o que ele aceitou,
adiante que “nūqua em ninhuã destas jdas lhe fez m de verificando depois que a comenda rendia menos de
e
o
dr como se custuma antes sempre foi a sua custa dando 20.000 reais, pelo que ficou prejudicado com a mercê!
as mais das uezes de comer aos oficiais de s.a.”. Refere também as mercês que o rei lhe dava em teoria
57 Por muito difuso que este código nos pareça. Na e que nunca recebia na prática, como a provedoria das
verdade, está por fazer para a Idade Média portuguesa capelas de D. Afonso IV e um padroado de igreja que
o que Nuno Gonçalo Freitas Monteiro fez para a vagasse. Sempre que Cristóvão Mendes falava ao rei
nobreza dos séc.s XVII e XVIII, nomeadamente o nos prejuízos que estava a acumular por estar ao seu
estabelecimento claro dos parâmetros do seu código serviço, este respondia-lhe que “tudo lhe satisfaria e
comportamental e de valores. O Código de Cavalaria, lhe faria m de q elle fosse cõtente”, mas nunca passava
e
o que diz José Mattoso na sua “Nobreza Medieval disso. Pelo contrário, continuava a nomeá-lo para cargos
Portuguesa. A família e o poder”, e o que dizem muitos de alta responsabilidade sem o respectivo mantimento.
outros de forma sectorial, devia ser articulado num Quando finalmente Cristóvão Mendes confrontou o rei
modelo inteligível e coerente, o que obviamente não é com uma petição (os “seus papeis”), D. João III, depois
possível aqui fazer. de os ver, “disse q tinha m rezão de ho jmportunar e
ta
58 Para além da bibliografia já referida, onde o tema é q fosse falar cõ ho secretairo”, e “que lhe auia de fazer
tratado, podemos encontrar na carta transcrita do Dr. m e satisfazerlhe todas suas perdas e gastos”. O que
e
Cristóvão Mendes de Carvalho algumas “indirectas” nunca fez, respondendo sempre com evasivas e novas
a esta problemática, para além das referências muito promessas a todas as interpelações e pedidos do seu
concretas a actos de corrupção, já salientados na nota conselheiro.
nº 42. Nomeadamente quando refere que tinha “dos 60 Refere, nomeadamente, que em Trás-os-Montes
milhores patrimonios que tinha desembargador neste certos almoxarifados “leuavão ao povo m mais do que
to
reino ho qual lhe fiquara de seus antecessores”, ao deuião e tirou tudo ho que lhe não podião leuar”, e que
contrário “de m outros que comecando de seruir s. a. “tirou outros tributos e sojeições ao povo sospendendo
tos
sem nada tem agora mais quele”… m oficiais q a mor parte depois forão condenados”.
tos
19