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FRAGMENTA HISTORICA                         Em torno do foral medieval da almotaçaria de
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           códice  do  Archivo  Real  y  General  de  Navarra   existindo a necessidade de coligir estas regras
           –,  o  qual  foi  depois  copiado  com  a  mesma   durante esse período –, permite ponderar que
           organização normativa e aumentado em dois   este regulamento ou foi compilado durante o
           itens, por João Esteves Correia . Ora, como   reinado de D. Afonso IV (até 1348), ou, então,
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           a postura mais recente do códice de Navarra   depois, no reinado de D. Fernando, quando o
           reporta-se  a  1324,  torna-se  possível  admitir   número da população recuperou o suficiente
           esta data como o limite ad quo do regulamento   para  justificar  um  novo  surto  edificatório,  o
           do fragmento, enquanto o  ad quem não      qual também é evidenciado pela construção
           deverá ultrapassar, como se viu, a década de   da nova muralha. Assim sendo, poderá este
           80 do século XIV. Mas, a circunstância de no   documento derivar da averiguação proposta
           intervalo proposto ter ocorrido a peste negra ,   por D. Afonso IV, nas referidas Cortes de 1331,
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           levando à morte de uma grande parte da     pois na resposta o rei disse que iria saber,
           população e consequentemente à quebra da   sobre a matéria de obras de janelas e balcões,
           pressão imobiliária na cidade  – e por isso não   “como sse en esto deue guardar o dereyto. da
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                                                      almotaçarya. e fara que sse guarde”, e sobre
           supra,  nota  44).  É  certo  que  esta  última  norma  não
           está completa pela referida deterioração, no entanto,   os alugueres, “que se guarde hi o dereyto. e
           a coincidência textual em todas os restantes itens   ouçam no os almotaçees ou os aluazijs. cuia
           e a presença do início da frase que descreve aquela   for a Jurisdiçom” ? Ou, por sua vez, poderá
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           praxe, permite-nos avançar, com alguma segurança, na   este documento ser contemporâneo de um
           atribuição proposta.
           78  Algo que se apresenta em linha com o esclarecimento   costume lisboeta, firmado em 20 de outubro
           de Franz-Paul de Almeida Langhans, Estudos de direito   de  1373,  justamente  sobre  os  alugueres  das
           municipal…,  p.  50,  sobre  as  primeiras  compilações   casas ? Novamente, estas questões ficam sem
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           das   normas   jurídico-administrativas   municipais:   resposta até que novos dados permitam um
           “Organizavam-se cadernos de posturas, extraindo-
           as  dos  livros  das  vereações  e  de  outras  colectâneas   melhor balizamento cronológico.
           antigas,  com  o  fim  utilitário  de  não  deixar  perder,   Certo  é  que  nenhuma  outra  fonte  normativa
           pelo esquecimento ou pelo desgaste do tempo, regras
           indispensáveis ao convívio social elaboradas em épocas   medieval de Lisboa contém regras específicas
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           anteriores”. Porém, também o conhecimento deste   sobre o assunto , seja no restante códice do
           fragmento não ajuda ao esclarecimento da data do foral
           da almotaçaria. Sem dúvida que o fragmento demonstra   chegados fossem ocupar os imóveis que entretanto
           que no século XIV se tinha feito o registo escrito das   ficaram vazios, não surgindo qualquer surto construtivo
           normas  jurídicas  utilizadas  para  o  ajuizamento  das   que justificasse o registo da sua regulação jurídica.
           contendas de obras na cidade de Lisboa. Mas será que   81  Ver supra, nota 67.
           em 1406 o caderno a que pertenceria o fragmento   82  Cf. §§ 1 a 5 no Título LXXIII, Livro 4, das Ordenações
           estaria  já  fisicamente  deteriorado  para  justificar  um   Afonsinas…, pp. 258-260. Este costume, do qual não
           novo traslado? Ou, segundo este raciocínio não fará   se encontra testemunho documental sobrevivente no
           mais  sentido  considerar  o  ano  de  1444,  porque  mais   Arquivo Municipal de Lisboa, ficou registado por ter sido
           distante? Além disso, é nas normas acrescentadas que   adaptado como lei geral nas Ordenações Afonsinas (José
           se encontra o item que refere o direito comum (ver   Domingues,  As Ordenações  Afonsinas, Três Séculos…,
           supra,  parte  final  da  nota  55).  Já  o  traslado  do  foral   pp. 211 e 546) sob o título: “Dos Allugures das Casas, e
           para o Livro das Posturas Antigas, de 1477, parece ter   da maneira que se deve teer acerca delles”. O prólogo
           tido  como  propósito  a  reunião  num  único  volume  de   assim mesmo o menciona: “Na Camara da nossa sempre
           todas  as  normas  jurídico-administrativas  relacionadas   Leal Cidade de Lixboa foi achado huũ Custume escripto,
           com  a  almotaçaria  da  cidade,  tal  como  se  constituiu   e geralmente usado per muito longo tempo, em esta
           o  Livro de  Posturas  da cidade de Évora, compilado   forma que se segue…”; concluindo, depois, com: “E com
           por Fernão Lopes de Carvalho, em 1466 (O Livro das   esta declaraçom mandamos e poemos por Ley que se
           Posturas  Antigas  da  Cidade  de  Évora, introd. e rev.   guarde geralmente o dito Custume por todo o Regno,
           Maria Filomena Lopes de Barros e Maria Leonor F. O.   segundo em elle he contheudo, e per nos declarado
           Silva Santos, Évora, CIDEHUS, 2014, pp. 2-3).  como dito he”.
           79  Entre outros, A. H. de Oliveira Marques, Portugal na   83  De referir que existe ainda uma lei geral, outorgada
           Crise dos séculos XIV e XV, vol. 4 da Nova História de   por D. Afonso III em 26 de dezembro de 1253, chamada
           Portugal, dir. Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques,   de “Lei de Almotaçaria”, que se reporta apenas a
           Lisboa, Editorial Presença, 1987, pp. 20-21.  matérias do domínio do mercado (abastecimento, taxas
           80   Mesmo  considerando  que  parte  do  contingente   sobre os produtos transacionados, tabelamento de
           populacional de Lisboa possa ter recuperado por via   salários), surgida pela necessidade da desvalorização
           da  migração  interna,  é  lógico  supor que os  recém-  monetária. Cf. Portugaliae Monumenta Historica…, vol.


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