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Sandra M. G. Pinto                                            FRAGMENTA HISTORICA


           pois, a contenda para uma instância superior,   da çidade que falla sobre os trauessadoyros”,
           pese embora os corregedores e os ouvidores   pois, considerava que tal “ho auemos em este
           estarem proibidos de se intrometerem nos   caso por escusado”. O rei referia-se, portanto,
           feitos da  almotaçaria,  pelo menos  desde o   ao item 43 do foral da almotaçaria de Lisboa,
           reinado de D. Afonso IV – ordem estabelecida   o  qual,  contudo,  continha  já  a  determinação
           nas  Cortes  de  Santarém  de  1331   –,  assim   de que “pode o desfazer ho comçelho cada
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           mesmo  confirmado  nas  Cortes  de  Elvas  de   uez  que  quiser  ou  algũu  que  seJa  vezinho
           1361  e noutras seguintes .                da ujlla quallquer o pode acussar que sse
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               90
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           Uma segunda menção ao foral da almotaçaria   desfaça” . No fim da carta, o rei determinou
           de  Lisboa  está  também  contida  numa    ainda que, para o futuro, nas ruas principais e
           outra carta do mesmo rei, datada de 12 de   públicas, em travessas ou becos da cidade não
           setembro  de  1474,  tendo  como  destinatário   fossem feitos mais nenhuns atravessadouros,
           o próprio concelho. D. Afonso V, tomando em   permitindo  apenas  aqueles  que  tivessem
           consideração  “os  muytos  litigios  e demandas   licença dada pelos vereadores e procurador
           que sse faziam ẽ esta nossa muy nobre e leall   da cidade e gozassem ainda do consentimento
           çidade de lixboa sobre os atrauessadoyros dos   da vizinhança próxima ao local a ser ocupado
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           balcoões que sam feytos e que sse fazem pollas   pelas estruturas aéreas .
           Ruas e travessas e becos della”, determinou a   Se a primeira carta mostra que D. Afonso V
           demolição de muitas destas estruturas aéreas   tinha  conhecimento  de  que  o  foral  continha
           que estorvavam a passagem da procissão do   regras  específicas  que  regulavam  o  juízo  dos
           Corpo de Deus durante a festa dos pescadores   almotacés nas contendas de obras, da segunda
           nas  imediações  da  Porta  da  Cruz,  Porta  da   comprova-se que, por extensão jurídica, as
           Alfândega e Porta da Oura. Todos os restantes   mesmas regras restringiam ou autorizavam as
           atravessadouros  da  cidade  mantinham-se  a   próprias ações construtivas dos particulares e
           salvo, com exceção daqueles que, com razão,   que estes conheciam-nas e serviam-se delas na
           o concelho julgasse que se deviam tirar, dando   defesa dos seus direitos.
           o rei a autorização necessária para esse efeito,   Ora, é precisamente este conhecimento que
           ao mesmo tempo que retirava dos particulares   se encontra registado numa sentença de
           a capacidade de se valerem das normas      apelação a uma decisão dos almotacés, datada
           jurídicas em vigor para impugnar tal decisão,   de 4 de abril de 1499, e na qual se acha a
           ou seja,  “nom  sse alegamdo  em  ello o forall   terceira menção do regulamento em estudo.
           89   Cf.  artigo  29.º  dos  Capítulos  Gerais  das  Cortes  de   A contenda, que envolvia o comendador
           Santarém de 1331, em Cortes Portuguesas, Reinado de   da  igreja  de  São  Martinho  de  Lisboa,  Antão
           D. Afonso IV (1325-1357)…, p. 38.          Gonçalves, e seu vizinho João Garcês, foi
           90  Cf. artigo 6.º dos Capítulos Gerais do Povo, em Cortes
           Portuguesas, Reinado de D. Pedro I (1357-1367), ed. A.   desencadeada pelo abate de um pessegueiro
           H. de Oliveira Marques, Nuno José Pizarro Pinto Dias,   daquele por este, na noite de 11 de junho de
           Lisboa,  Instituto  Nacional  de  Investigação  Científica,   1498, ainda que o verdadeiro motivo da queixa
           1986, pp. 33-34.                           se relacionasse com as paredes que separavam
           91   Cf.  artigo  31.º  dos  Capítulos  Gerais  das  Cortes  de
           Lisboa  de  1371,  em  Cortes Portuguesas, Reinado de   as propriedades de ambos. Quatro dias
           D. Fernando I (1367-1383), Volume I (1367-1380), org.   depois, os almotacés daquele mês (Pero de
           A.  H.  de  Oliveira  Marques,  Lisboa,  Instituto  Nacional   Lisboa e Diogo Peres) deslocaram-se ao local
           de  Investigação  Científica,  1990,  p.  29;  artigo  5.º  dos   da contenda a pedido de Antão Gonçalves.
           Capítulos Gerais das Cortes de Coimbra de 1394-1395   Segundo este, o seu vizinho tinha madeirado
           e artigo 80.º dos Capítulos Gerais das Cortes de Leiria-
           Santarém  de  1433,  em  Armindo  de  Sousa,  As cortes   numa sua parede que dividia o seu quintal do
           medievais portuguesas (1385-1490), 2 vol.s, Porto,   curral dele, era responsável pelo derrube de
           Instituto Nacional de Investigação Científica – Centro de
           História da Universidade do Porto, 1990, vol. 2, pp. 245   92  Cf. Livro das Posturas Antigas…, p. 112.
           e 303; e artigo 45.º dos Capítulos Gerais das Cortes de   93  Cf. Arquivo Nacional – Torre do Tombo [ANTT], Leitura
           Lisboa de 1439, em Cortes Portuguesas, Reinado de D.   Nova, Livro 4 da Estremadura, fl.s 10 a 10v. Ver Apêndice
           Afonso V (Cortes de 1439)…,  p. 109.       Documental, Doc. 3.


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